Apresentação teve elenco de alto nível e ótimo desempenho da orquestra
The Rake’s Progress é uma grande ópera! Baseada em uma exposição de gravuras do pintor inglês William Hogarth (1697-1764), que Stravinsky viu em Chicago, e transformada em libreto por W.H Auden e Chester Kallman, a ópera, de 1951, é mais um desdobramento do dilema humano expresso por Fausto, aqui não em busca da vida eterna, mas por riqueza e glória. Em sua ganância e prepotência, Mr. Tom Rakewell é subjugado pelo diabólico Nick Shadow, que é uma sombra, um duplo, até ficar só e arrasado. No fim, os protagonistas se reúnem no palco para, qual em uma fábula, apresentar a moral da história: corações e mentes vazias são a morada do diabo.
Stravinsky, todos sabemos, é um dos compositores mais importantes do século XX. Já teria seu lugar assegurado na história se tivesse feito apenas a sua trilogia de balés Pássaro de fogo, Petrushka e A sagração da primavera. Mas Stravinsky teve vida longa para criar muito mais, bem além da explosão de cores e ritmos de suas composições da década de 1910, experimentando com as mais variadas vertentes, até a música dodecafônica e o neoclassicismo.
O mestre é de uma inventividade musical infinita. The Rake’s Progress (A carreira do libertino) se vale da estrutura tradicional da ópera, com árias, duetos, coros e passagens instrumentais, até recitativos com cravo. A instrumentação é um requinte. A linguagem é igualmente rica – são passagens que lembram a música barroca, outros trechos tonalmente clássicos, melodias de um cromatismo altamente expressivo e tudo costurado em um grande arco dramático que leva à perdição de Rake. E, bem no fim, um epílogo moralista. The Rake’s Progress é uma das obras-primas líricas do século passado.
A encenação que está em cartaz no Theatro Municipal de São Paulo, dirigida por Julianna Santos e Maria Thais, é despretensiosa, mas inteligente e criativa. O cenário (Marcio Medina) é abstrato, aberto nas coxias, expondo toda a caixa cênica do teatro. Cortinas de cordas pendentes delimitam espaços translúcidos e caminhos como passarelas baixas definem um desenho geométrico. Sobre o palco, ainda estão alguns praticáveis com degraus. E, com forte impacto visual, longas colunas, que de vez ou quando balançam qual enormes pêndulos pesados, são baixados sobre a cena. Uma excelente iluminação (Fábio Retti) e figurinos bem resolvidos (Laura Françoso) concorrem para uma solução, dentro de toda a simplicidade, muito adequada.
Alguns de nossos melhores cantores compõem o elenco. Assisti à récita do dia 13 de novembro, em que Tom Rakewell foi interpretado por Fernando Portari, o destaque vocal da noite. Com boa presença cênica, Portari exibiu uma voz maleável e de grande potência. Em passagens cromáticas de forte intensidade, o tenor tensionou a linha melódica com enorme expressividade. Mas todos os outros solistas tiveram atuação cênica e vocal de alto nível: Lina Mendes fez uma Anne Trulove muito convincente, Leonardo Neiva conduziu com propriedade o diabo Nick Shadow, Luisa Francesconi interpretou Baba o turco e Luiz Ottavio Faria fez o austero pai. Participaram ainda Juliana Taino (Mother Goose), Giovanni Tristacci (Sellem) e Rafael Thomas (empregado). [O outro elenco, que por sua categoria não pode ser chamado de segundo, tem Aníbal Mancini (Tom Rakewell), Marly Montoni (Anne Trulove), Michel de Souza (Nick Shadow) e Luciana Bueno (Baba o turco).]
Boa atuação teve também o Coral Paulistano (preparação de Maíra Ferreira). Mas talvez o principal protagonista da noite tenha sido a Orquestra Sinfônica Municipal, em ótimo desempenho. Dirigida com energia e verve por seu titular Roberto Minczuk, a orquestra impôs, com virtuosismo e equilíbrio, uma energia musical que se manteve da fanfarra inicial dos metais até o epílogo.
The Rake’s Progress encerra a temporada lírica do Theatro Municipal, que teve ainda Maria de Buenos Aires, de Piazzolla, e A voz humana, de Poulenc. É um saldo positivo considerando a pandemia que assola o Brasil e o planeta.
p.s. The Rake’s Progress é a primeira programação, desde a eclosão da pandemia, em que o Theatro Municipal volta a operar com 100% de sua capacidade. No sábado esteve bem cheio. Máscaras eram obrigatórias, assim como a apresentação do certificado de vacinação.
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