Poesia em forma coral, no texto e na música

por Camila Fresca 19/09/2022

No último final de semana, o Coral Paulistano fez a estreia da Cantata, de André Mehmari. Encomendada pelo grupo para ser um dos destaques da temporada 2022, é uma obra de fôlego, em nove partes e com cerca de cinquenta minutos de duração. Momentos corais densos se alternam a partes camerísticas, cantadas por solistas. 

Concebida para coro, clarinete e piano, a obra foi dirigida pela titular do grupo, a maestra Maíra Ferreira, e contou com o próprio Mehmari ao piano, além de Paula Pires no clarinete. Cantata traz textos do poeta negro Cruz e Souza (1861-1898), um dos maiores nomes do simbolismo brasileiro. Os poemas selecionados foram Anima mea, Na luz, Voz fugitiva, Acrobata da dor, Velho, Aparição, Coração confiante, Inefável e Asas abertas

Mehmari trabalha os poemas dentro do universo tonal e muito próximo da música popular. A escrita coral tem ótimos momentos, em que os poemas de Cruz e Souza são tratados de forma criativa e original. Às vezes, contudo, o compositor parece explorar menos do que poderia as possibilidades musicais e técnicas do excelente grupo que tem à sua disposição. É difícil falar de uma nova obra em apenas uma audição, sem ter acesso à partitura, mas me parece que Na luz (tocada também no bis) e Acrobata da dor são as partes mais ricas e bem realizadas. 

De forma geral, a escrita da Cantata é sempre afetiva e a combinação coro, clarinete e piano funciona bem – o contraponto feito às vozes pelo clarinete e pelo piano é notável. Segundo o texto do compositor que acompanha o programa, a parte do piano é mais um apoio ao coro do que propriamente um solista, “mas algumas liberdades criativas são a ele permitidas, como no contínuo de uma peça barroca”. De fato, na maior parte das vezes o piano foi muito além de dar suporte às vozes, revelando-se altamente inventivo, poético, improvisando comentários à escrita coral. Evidente que o resultado não seria o mesmo com qualquer outro instrumentista; o enorme talento de Mehmari fez toda diferença para o resultado final da parte pianística. 

O clarinete, por sua vez, é anunciado no texto como um elemento que “sobrevoa todo discurso musical”. O instrumento é mesmo fundamental na arquitetura da peça, sendo explorado em sua tessitura e gama dinâmica. Também aqui o trabalho do intérprete fez toda a diferença – a jovem clarinetista Paula Pires é uma instrumentista sensacional, de grande riqueza de timbres e total domínio técnico de seu instrumento. Atuando de forma praticamente ininterrupta na peça, Pires brilha sem nunca “roubar” o show para si. 

Tal como o piano e o clarinete, a interpretação do Coral Paulistano foi excelente. Além de muito bem preparado, o conjunto estava envolvido e entregue à música – justamente por isso, fica a vontade de ver o coro sendo mais desafiado pela partitura. Fazendo jus à proposta original de Mário de Andrade, criador do grupo, de estimular o canto coral em português, a pronúncia do Paulistano foi impecável do começo ao fim – era possível entender os textos sem acompanhar as legendas. Destaque-se, portanto, o trabalho das regentes Maíra Ferreira e Isabela Siscari (assistente do grupo). Também os solistas, todos cantores do Paulistano, saíram-se muito bem – a soprano Aymée Wentz, o baixo Xavier Silva (assisti no dia 17; no dia 18, o solo de baixo ficaria com Marcelo Santos) e o tenor Marcus Loureiro. 

O concerto teve iluminação especial, pensada para cada parte da música, e o resultado geral foi um espetáculo original, bonito e delicado. O Coral Paulistano contou com casa cheia, um público caloroso que aplaudiu cada uma das partes e agradeceu efusivamente ao final. Dificilmente haveria forma melhor do grupo realizar o principal concerto de sua temporada.

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Apresentação do Coral Paulistano no Theatro Municipal de São Paulo [Reprodução/Facebook/MaíraFerreira]
Apresentação do Coral Paulistano no Theatro Municipal de São Paulo [Reprodução/Facebook/MaíraFerreira]

 

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