Kent Nagano recria em disco concerto da sexta-feira santa de 10 de abril de 1868 na Catedral de Bremen, em que foram apresentados movimentos de concerto de Bach e Tartini, uma canção de Schumann e trechos do Réquiem alemão
A imagem que temos de Johannes Brahms é a de um compositor extremamente rigoroso. Afinal, ele destruiu vinte quartetos de cordas até considerar que o vigésimo primeiro merecia ser publicamente executado e publicado; só se arriscou a compor uma sinfonia em 1876, quando já estava com 43 anos e era considerado um dos grandes compositores de sua época.
Será? O jovem que entrou na casa dos Schumann em 1853 era um perfeito modelo do herói romântico então na moda: belo rosto anguloso, cabelos lisos e loiros, alto, silhueta esguia. Era tão charmoso quanto Franz Liszt em seus tempos de “superstar” virtuose do piano. Dê, porém, uma olhada nas fotos do final de sua vida. Uma imensa barba branca, longos cabelos também esbranquiçados revoltos, rosto redondo, gordo, atarracado.
Na verdade, Brahms até resistiu por um bom tempo à adoção da barba, que praticamente todo o seu círculo de amizades usava. Quando deixou a sua crescer, ficou um tempo fora de circulação. E sua aparência mudou tanto que fez uma de suas célebres brincadeiras com um amigo chegado, o musicólogo Gustav Nottebohm, um dos primeiros biógrafos de Beethoven. Apresentou-se diante dele como “Kappelmeister Müller de Braunschweig”. Nottebohm passou a noite inteira ingenuamente conversando com o Kappelmeister Müller.
À medida que envelhecia, Brahms tornava-se ainda mais brincalhão. Em janeiro de 1896, regeu seus dois formidáveis concertos para piano em Berlim. Seu grande amigo, o violinista Joseph Joachim, propôs um brinde "ao maior compositor". Antes que ele pudesse terminar a frase, Brahms gritou “Muito bem; então, à saúde de Mozart!” e insistiu em caminhar tilintando as taças com os presentes.
Estas pensatas, que recolhi há tempos, mostram que seu muitas vezes repetido rigor e autocrítica não correspondem muito à realidade. Tudo isso me passou pela cabeça enquanto ouvia um álbum recém-lançado pelo regente Kent Nagano, à frente da Filarmônica de Hamburgo e uma penca de corais: Jóhann Kristinsson, Chor der KlangVerwaltung, Cappella Vocale Blankenese, Chor der Kantorei St. Nikolai, Franz-Schubert-Chor Hamburg, Hamburger Bachchor St. Petri, Jugendkantorei Volksdorf, Kammerchor Cantico e Vokalensemble conSonanz.
Brahms deixou claro que não compôs este réquiem, sua obra mais ambiciosa e longa, para o ritual religioso, mas sim para a sala de concerto. Cedeu, porém, ao costume de se incluir peças de outros compositores naquele ofício da sexta-feira santa
Os solistas são a mezzo-soprano Kate Lindsey e o barítono Jóhann Kristinsson. Só que a lista dos participantes não termina por aí. Inclui ainda a violinista Veronika Eberle e o organista Thomas Cornelius, que interpretam três peças em transcrições para violino e órgão de Bach (andante do Concerto para violino em lá menor BWV 1041), Giuseppe Tartini (andante do Concerto para violino em si bemol maior D. 120; e Robert Schumann (Abenlied, opus 85, no. 12).
Os movimentos de concerto de Bach e Tartini e a canção de Schumann funcionam como interlúdios na execução de Um réquiem alemão, de Brahms. A ideia de Nagano foi reproduzir o concerto que aconteceu na sexta-feira santa de 10 de abril de 1868 na Catedral de Bremen. Concerto regido pelo próprio Brahms. Sem o quinto movimento, que só seria concluído no final daquele ano pelo compositor. Mas com um finale que é difícil acreditar que Brahms tivesse concordado: o coral “Venha e veja o Cordeiro”, a ária para soprano “Eu sei que o meu Redentor vive” e o coral “Aleluia”, do oratório O messias, na versão em alemão.
Mas é isso mesmo: Brahms deixou claro que não compôs este réquiem, sua obra mais ambiciosa e longa, para o ritual religioso, mas sim para a sala de concerto. Cedeu, porém, ao costume de se incluir peças de outros compositores naquele ofício da sexta-feira santa. Compreende-se que o compositor tenha topado a parada. Afinal, ele ainda estava de luto pela morte da mãe, em 1865, e voltar a Bremen era recordá-la. Ele entrou na catedral, lotada, com 2 mil pessoas, de braço dado com Clara Schumann. A inclusão do maravilhoso Abenlied de Robert numa emocionante versão para violino e órgão certamente o remeteu ao compositor que lhe abriu as portas para o mundo musical, em 1853. Também se encaixam bem as versões para violino e órgão de dois andantes de concertos de Bach e Tartini.
Senti falta de um dos momentos mais impactantes do Réquiem, o quinto movimento, para soprano, coro e orquestra, que só seria composto no final daquele ano. É um lied no qual a soprano canta um fragmento do Evangelho de São João, no qual Jesus promete a seus discípulos a ressurreição, enquanto o coro canta um verso do Eclesiastes: “Eu quero te consolar como uma mãe consola seu filho”. (Vá até o YouTube e ouça uma excelente versão com Kathleen Battle, coro e Orquestra de Chicago, regidos por James Levine, gravação de 1984; clique aqui.)
Eu até entendo que os músicos busquem, em atitudes arqueológicas típicas de nosso tempo, cavoucar este ou aquele detalhe de obras-primas para ganhar quinze segundos de atenção no tsunami do mundo digital. Mas que é esquisito fazer uma salada musical de uma obra tão coesa quanto o Réquiem, lá isso é.
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