Coletânea com gravações de Nelson Freire feitas pela rádio Südwestfunk trazem raridades como o Prometeu, de Scriabin
Elusivo e introspectivo, durante muito tempo Nelson Freire foi chamado de “o segredo mais bem guardado do piano”. Três anos após sua prematura e trágica partida, a posteridade segue a descobrir tesouros que só fazem aumentar a estatura de um dos maiores artistas do teclado que nosso país já produziu. Agora o selo SWR Music lança um generoso álbum triplo contendo gravações feitas pela rádio Südwestfunk – com toda a qualidade técnica e sonora que caracteriza as emissoras alemãs.
O lapso temporal abrangido é vasto: ouvimos Nelson Freire aos 24 anos de idade, em 1968, um “jovem leão” do teclado, e já amadurecido, em 1999, aos 55. E o repertório, eclético, mescla cavalos de batalha do pianista a itens que ele pouco executou – e dos quais inexistia gravação comercial até agora.
O primeiro disco é inteiramente dedicado a Chopin, e serviria para fidelizar qualquer desavisado não familiarizado com a arte de Nelson Freire. Acompanhado pela Orquestra da SWF, sob a batuta de Ernest Bour, ele entrega em 1970 (poucos meses antes da performance da partitura com as mesmas forças que foi lançada pelo selo francês INA em 1999) uma performance do Andante Spianato e Grande Polonaise Brillante que é pura fluência e deleite. Quase três décadas mais tarde, suas interpretações da Sonata nº 2 Op. 35 (a da Marcha Fúnebre) e do Scherzo nº 4, de 1999, estão impregnadas das qualidades poéticas que sempre fizeram o Chopin de Nelson Freire um dos mais sedutores que se pode ouvir em disco.
O CD seguinte começa com Schumann – a Fantasia Op. 17, de cuja riqueza anímica Freire notabilizou-se como um dos mais intensos e perspicazes observadores – não por acaso, outro registro da peça (em Toronto, em 1984) foi escolhido pela Philips para abrir o álbum dedicado a Nelson da coleção Great Pianists of the XX Century.
O mergulho na psicologia schumanniana é acompanhado de bravura das duas Rapsódias Op. 79, de Brahms (itens ausentes tanto do disco dedicado ao compositor que ele gravou para a Sony em 1967 quanto no álbum da Decca lançado duas décadas mais tarde, em 2017), e o primor de coloridos e sutilezas que ele encontra no Debussy ausente de seu disco da Decca de 2009: as Estampes, cartões postais musicais em que esse mineiro que tinha um apartamento em Paris demonstra sua pura intimidade com o repertório francês.
Para um colecionador fanático de tudo que Nelson Freire gravou, os maiores tesouros encerram-se no terceiro e último disco da caixa. Confesso que não sabia que o Reverendo do piano havia alguma vez ingressado no mundo feérico de Prometeu, o poema do fogo, de Scriabin. Mas ei-lo, em 1979, sob a batuta de Dennis Russell Davies, com a Orquestra da SWF, conjurando o mundo onírico da Era de Prata russa com muita verve.
Em seguida, temos o Nelson de 26 anos, em 1970, magicamente entrelaçando a sonoridade de seu piano à textura orquestral nas Noites nos Jardins da Espanha, de Manuel De Falla – cujas demandas de discrição e refinamento, de um lado, e domínio da verve ibérica, do outro, parecem escritas sob medida para a mescla de calor e reserva que constituía o talento de Nelson Freire.
Após falar como nativo o idioma musical de tantos países, nada mais justo que o poliglota do teclado encerrasse com um atestado de brasilidade. Ludswighafen, 1999: a orquestra é a Deutsche Staatsphilharmonie Rheinland-Pfalz, regida por Theodor Guschlbauer. Dois anos antes, Nelson e este regente vieram a São Paulo, na temporada da Sociedade de Cultura Artística, com a Orquestra de Estrasburgo, em concertos de Bartók e Brahms. Mas, em solo germânico, o que eles tocaram foi Villa-Lobos, em um Momoprecoce que é puro frescor. Ouçamos Nelson Freire.
![O pianista Nelson Freire nos anos 1960 [Divulgação]](/sites/default/files/inline-images/w-nelson_freire.jpg)
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