O que se viu no concerto do Third Coast Percussion foi um nível altíssimo de precisão, coesão e expressividade, mostrando que o americano é sim um dos maiores compositores de nosso tempo
O público quase lotou o novo e acolhedor Teatro de Cultura Artística na segunda-feira para assistir ao primeiro concerto no Brasil do Third Coast Percussion, quarteto de percussionistas norte-americanos que estão comemorando seus vinte anos de existência. E compartilhou performances irretocáveis, precisas, de música minimalista.
De fato, um repertório em tributo a Philip Glass, o papa maior da música que os franceses ironicamente chamam de repetitiva. Na primeira parte, seu parceiro de primeira hora, Steve Reich (hoje com 88 anos), ensanduichou-se entre compositores jovens na casa dos 40 anos, como o inglês Devonté Hynes, a indiana Jlin radicada nos EUA (nome inteiro Jerrilynn Patton), e David Skidmore (integrante do Third Coast).Toda a segunda parte foi reservada a Glass. E para obras ligadas à Amazônia, motivadas pela parceria do compositor com o extraordinário Grupo Uakti, de Belo Horizonte.
A peça que soou mais datada foi a de Reich. Composta em 1973, quando ainda não tinham nascido Hynes, Jlin e Skidmore, Music for pieces of wood é executada com o quarteto tocando claves, “instrumentos de percussão de uso comum na rumba e em outras danças latino-americanas”, esclarece o texto do programa de Eliana Guglielmetti Sulpicio. A repetição incessante de padrões rítmicos assimétricos e a técnica da defasagem irritam os ouvidos. Gosto particularmente de seus inovadores vídeos da virada do século 21 (especialmente “Three Tales: Hindenburg, Bikini e Dolly”, de 2002).
Em compensação, Perfectly voiceless, de Hynes, Torched and Wrecked (incendiado e destruído), de Skidmore, e sobretudo Duality, de Jlin, ofereceram ao quarteto espaço para tornarem a música minimalista interessante, atraente e capaz de se conectar com o público. Não é pouco.
Nesse sentido, igualaram-se à empatia que a música de Glass provoca em todo tipo de ouvidos – e que se repetiu no final da ótima segunda parte inteiramente dedicada à Amazônia (em arranjos do grupo), com justos aplausos entusiásticos e direito a bis.
Um dos mais notáveis músicos da atualidade, antenadíssimo com a música contemporânea, o violinista letão Gidon Kremer, recorreu a Vivaldi e Mozart ao responder a uma enquete ano passado sobre a música de Glass: “Você pode achar que ele é repetitivo em seus modelos e expressões idiomáticas, mas Vivaldi também não era repetitivo? Mozart não era? Estou falando superficialmente, mas ainda acho que em muitas peças de Philip você pode encontrar seu refinamento ao lidar com os mesmos modelos”.
Na mesma enquete, o maestro Dennis Russel Davies disse o seguinte: “Você precisa tocar absolutamente afinado e ser capaz de articular os ritmos exatamente com nuances, sem rubatos (a menos que pretenda usá-los)”.
Davies fala da orquestra. Em percussão o objetivo é ainda mais difícil. Foi isso que se viu no concerto do Third Coast Percussion: um nível altíssimo de precisão, coesão e expressividade. É uma música que parece fácil, mas não é. É preciso aliar precisão de cada um à coesão dos quatro percussionistas – sem esquecer a expressividade. A repetição tem tudo para ser enfadonha. A menos que os músicos que a interpretam a reinventem no palco.
Afinal, como lembrou Gidon Kremer, “O desafio quando se lida com expressões idiomáticas minimalistas é que você precisa ser o mais expressivo possível”. Repasso a todos os que estiveram no concerto de segunda-feira no Cultura Artística a dica de Kremer: “O que me inspirou muito foi ler a maravilhosa autobiografia de Philip, ‘Palavras Sem Música’.” Existe uma edição em espanhol disponível no kindle. A leitura deste livro mudou minha postura em relação a Glass. Ele é, sim, um dos maiores compositores do nosso tempo.
![Os músicos do Third Coast Percussion [Divulgação]](/sites/default/files/inline-images/w-third_coast.jpg)
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