Agora que o século XX se encontra a uma confortável distância de mais de duas décadas, sua música começa a entrar com maior regularidade nas programações brasileiras de concerto. A última semana de setembro, curiosamente, foi de uma verdadeira “imersão Prokófiev” em São Paulo: o compositor russo foi o destaque do mesmerizante recital do pianista Vadym Kholodenko na terça-feira, dia 27, na Sala São Paulo, dentro da série da Sociedade de Cultura Artística, e, 72h depois, na sexta, dia 30, houve a estreia, no Theatro Municipal, de uma montagem de sua ópera O amor das três laranjas.
Com uma clareza estrutural iluminadora e um sentido único para contrastes, Kholodenko encantou com uma leitura absolutamente transcendental da Sonata nº 7, de Prokófiev. Na primeira parte do programa (que também continha Schubert), executou, com o refinamento que faz dele um rematado executor do repertório do século XVIII, as Quatro peças para piano, op. 32, uma espécie de “segundo degrau” do neoclassicismo do compositor russo: incluindo uma Gavota que o próprio Prokófiev gravou. Elas são de 1919 – dois anos depois, portanto, da deliciosa paródica haydniana da Sinfonia Clássica, e dois anos antes do não menos delicioso Amor das três laranjas.
A ópera estreou em 1921, em Chicago – quase ao mesmo tempo que o Concerto para piano nº 3, a mais exitosa dentre as partituras concertantes de Prokófiev. Aos 30 anos, o antigo menino-prodígio consolidava sua maturidade musical, com uma obra de frescor contagiante.
Difícil exagerar a dificuldade técnica de execução de uma música cujo fio narrativo é tecido sobretudo pelo efetivo orquestral. E a Orquestra Sinfônica Municipal, sob regência de Roberto Minczuk, não decepcionou: alertas, bem preparados e obviamente empenhados, seus integrantes trouxeram todo o frescor, colorido e matizes de dinâmica da borbulhante e personalíssima partitura de Prokófiev.
Do ponto de vista teatral, O amor das três laranjas reflete o arrojo de Vsévolod Meyerhold (1874-1940) – o visionário diretor que, rejeitando o naturalismo, revolucionou o teatro russo, antes de perecer nas mãos dos esbirros de Stálin. Foi o criador da biomecânica teatral quem presenteou Prokófiev, em 1918, com uma adaptação russa da comédia O amor das três laranjas, de Carlo Gozzi (1720-1806) – dramaturgo veneziano cuja Turandot rendeu óperas de Busoni (1917) e Puccini (1924).
Está aí o germe da metalinguagem teatral dos Seis personagens em busca de um autor, de Pirandello (escrita no mesmo ano de 1921), e daquele que seria o teatro épico de Brecht, com sua célebre “derrubada da quarta parede”. Se a estilização de personagens claramente oriundos da commedia dell’arte refuta peremptoriamente qualquer tipo de naturalismo (ou, na ópera, de verismo), o coro, dividido em partidos estéticos contrastantes, discute o fazer teatral ao mesmo tempo em que dele participa – e nele intervém. Tudo isso com uma música não-linear e irônica, em simbiose profunda com o caráter disruptivo e subversivo do texto.
Plenamente consciente da tradição operística que o precede, Prokófiev produz uma espécie de Flauta mágica carnavalizada do século XX, incorporando tanto a paleta orquestral luxuriante de seu mestre Rímski-Kórsakov quanto o implacável elemento de sátira política da última ópera deste, O galo de ouro. Dentre outros achados, é difícil não ver, por exemplo, a cozinheira Creonta (em caracterização hilária do baixo Gustavo Lassen), guardiã das laranjas, como uma paródia do dragão wagneriano Fafner. Já na cena do jogo de cartas entre o Mago Clélio (Anderson Barbosa) e Fata Morgana (Gabriella Pace, uma revelação como vilã), Prokófiev parece parodiar a si mesmo, remetendo à cena da roleta da ópera dostoievskiana Um jogador (composta em 1917, porém estreada apenas em 1929).
Se a comicidade do Príncipe que não consegue rir já cativava no início da ópera, o timbre glorioso e rico em harmônicos de Giovanni Tristacci brilhou nas efusões líricas do dueto com Ninete
Incorporando elementos circenses à dramaturgia, o diretor Luiz Carlos Vasconcelos entregou um espetáculo fluente e bastante divertido, com cenografia límpida e imaginativa, e figurinos de bom gosto.
O protagonista da ópera é uma espécie de “Tamino da depressão” – um príncipe sem nome que começa como os personagens cômicos que eram os tenores das óperas do século XVIII, para gradualmente transformar-se no tipo de herói (ou, aqui, anti-herói) romântico que esse registro vocal virou no século XIX. Giovanni Tristacci entregou tudo isso: se a comicidade do Príncipe que não consegue rir cativava no início da ópera, seu timbre glorioso e rico em harmônicos brilhou nas efusões líricas do dueto com Ninete, a laranja sobrevivente (a soprano Maria Sole Gallevi, igualmente intensa). Não seria simples um tenor atuar ao lado de Tristacci e não ser engolido pela excelência do colega: Jean William, contudo, revelou bastante amadurecimento, e soube ser um Trufaldino solerte e desenvolto.
O núcleo dos “malvados favoritos” da ópera é comandado por Fata Morgana (uma espécie de Rainha da Noite sem superagudos), encarnada por uma Gabriella Pace na plenitude de seus recursos cênicos e vocais, secundada por prestações não menos sólidas e convincentes de Leonardo Neiva (Leandro) e Lidia Schäffer (princesa Clarice).
Tristeza foi saber, ao fim do espetáculo, que a montagem de La fanciulla del west, de Puccini, prevista para este ano, terá que ser adiada, por questões técnicas, para 2023. Já que estamos falando do ano que vem, não custa um conselho/palpite. Em 2023, serão 70 anos de falecimento de Prokófiev. Por que não aproveitar a efeméride para encenar mais uma ópera deste compositor tão criativo?
[A ópera 'O amor das três laranjas' segue em cartaz até o próximo final de semana; clique aqui para ver mais detalhes no Roteiro do Site CONCERTO]
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