Emmanuele Baldini e Pablo Rossi registram em disco as sonatas para violino e piano de Heitor Villa-Lobos
Em época de Olimpíadas, a palavra da vez é “superação”, repetida à exaustão quando se fala nos êxitos de nossos atletas – que quase sempre se devem a seus esforços puramente individuais, enfrentando a falta de apoio e estrutura que são crônicas não apenas no esporte, mas em diversas esferas de nossa sociedade.
Pois bem: superação não parece uma palavra inexata para descrever a trajetória de nosso maior compositor, Heitor Villa-Lobos (1887-1959), cujo talento foi o único capital com que ele contava para superar o conservadorismo provinciano do meio musical brasileiro da época, bem como as limitações de sua falta de educação musical formal, para granjear fama e reconhecimento em todo o planeta. E o mais recente volume da miraculosa série Música do Brasil, da Naxos, documenta justamente os primeiros passos dessa trajetória – antes de Villa-Lobos adquirir fama internacional e sinecuras nacionais. Trata-se das três sonatas para violino e piano, escritas entre 1912 e 1920.
A música de câmara era uma prática relativamente recente no Brasil de início do século XX. Contam-se nos dedos os compositores nacionais que já haviam escrito sonatas para violino e piano antes de Villa-Lobos: Leopoldo Miguéz, Henrique Oswald, Glauco Velásquez... A lista não é longa. Todos, não por acaso, fortemente influenciado pelo idioma musical francês. Não podia ser diferente, assim, com o violoncelista que atuava na Sociedade de Concertos Sinfônicos do Rio de Janeiro, sob regência de Francisco Braga.
Embora Villa-Lobos tivesse regressado de sua excursão pelo norte do país com a Companhia Alves da Silva, nada há de “folclórico”, “popular”, “sertanejo” ou “amazônico” em sua Sonata nº 1, de 1912. Até o título da obra é em francês: Désespérance (“desespero”). Reflexo do clima da belle époque carioca (nas palavras de Monteiro Lobato, éramos então uma “colônia mental da França”), a obra é rica em modulações e cromatismos, ecoa o sensualismo “decadentista” da poesia de seu tempo, e enfeixa, em movimento único, as três partes que convencionalmente constituem uma sonata. Ela só viria a ser estreada cinco anos depois, em 1917, tendo, ao piano, a mulher do compositor.
Lucília entrou na existência de Villa-Lobos no final de 1912. Casou-se com ele no ano seguinte, e foi um esteio indispensável não apenas na vida pessoal, como na carreira. Pois era dotada da educação musical sólida que faltava ao marido. A partir de Lucília, Villa-Lobos adquire não apenas um conhecimento maior da escrita para o piano, instrumento de sua mulher, como confiança na composição em geral.
Esse ganho se reflete na segunda sonata para violino e piano, de 1914. Assim como a obra anterior, Villa-Lobos chama-a de Sonata fantasia – devido à liberdade com que aborda a forma. As referências, novamente, são francófonas: César Franck (1822-1890) e Claude Debussy (1862-1918). Com relação à primeira sonata, Villa-Lobos demonstra aqui mais ambição e fôlego. Não por acaso, incluiu-a no programa apresentando na Semana de Arte Moderna, em 1922, bem como em uma audição parisiense, no ano seguinte. Nela o compositor já identificava um digno cartão de visitas musical.
Antes de pisar o solo francês, porém, Villa-Lobos escreveu sua terceira obra para a formação, em 1920. Nesses seis anos, o salto na linguagem e na escrita do compositor é considerável. Mais amadurecida do que as criações anteriores, a terceira sonata é também mais virtuosística, e talvez as elevadas demandas que ela coloca aos intérpretes sejam responsáveis por sua execução ser tão rara, mesmo em solo brasileiro.
Tais demandas são enfrentadas com galhardia pelos músicos do CD da Naxos. Spalla da Osesp, Emmanuele Baldini gravou anteriormente, em disco que pertence à mesma série, as sonatas de Miguéz e Velásquez. Assim, empresta um sentido de continuidade e consciência histórica à interpretação das obras de Villa-Lobos, sucessoras diretas das outras. Parecendo entender-se perfeitamente com seu parceiro, Pablo Rossi traz uma sonoridade rica, que seria prazeroso poder ouvir em disco com maior frequência. Com empenho e convicção, Baldini e Rossi traçam um retrato revelador de nosso maior artista quando jovem.
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