Zurique apresenta ‘O anel do nibelungo’, de Richard Wagner

por Nelson Rubens Kunze 31/05/2024

Em ótima performance musical conduzida por Gianandrea Noseda, diretor cênico Andreas Homoki dessacraliza saga da destruição do mundo, trazendo história para mais perto de nossa realidade; ciclo completo pode ser assistido pela internet até o dia 15 de junho

O anel do nibelungo (Der Ring des Nibelungen) é um ciclo de quatro óperas escrito pelo compositor alemão Richard Wagner na segunda metade do século XIX. O libreto também é de Wagner, que se inspirou em sagas nórdicas e no Nibelungenlied, epopeia heroica anônima surgida na Alemanha por volta de 1200, que conta a história de Siegfried, guerreiro invulnerável matador de dragões. 

O pano de fundo é mais ou menos o seguinte: Alberich renuncia ao amor e com isso consegue roubar o ouro dos nibelungos guardado nas profundezas do Rio Reno. Do ouro ele forja o anel, que dá a seu portador poderes para controlar o mundo. Já no reino dos deuses, o pai Wotan contratou os gigantes Fafner e Fasolt para erigir a sua morada, o Walhalla. Como pagamento, Wotan havia prometido a sua cunhada, Freia. Sua mulher Fricka, contudo, não aceita isso e força Wotan a encontrar outra saída para a remuneração dos gigantes. Aconselhado por Loge, deus do fogo, Wotan decide então roubar o ouro (e o anel) de Alberich, para recompensar os gigantes. Mas Alberich amaldiçoa o anel, que trará desgraças e infortúnios para quem o possuir...

A história envolve deuses, valquírias guerreiras, humanos mortais e seres mitológicos que habitam rios e terra. O herói Siegfried é filho dos irmãos gêmeos Siegmund e Sieglinde, que por sua vez foram concebidos pelo deus Wotan em um relacionamento “extra-conjugal” (o que irrita a sua mulher Fricka). A intenção de Wotan era a de gerar o filho Siegmund para que este lhe reconquistasse o anel que ficou em poder do gigante Fafner, transformado em um enorme dragão. E ainda tem Brünnhilde, aprisionada por Wotan em uma rocha cercada de fogo, que só será libertada pelo amor do herói que não sabe o que é o medo.

O fio condutor ao longo das quatro óperas, cerca de 15 horas de música, é a conquista do anel com seus poderes ilimitados – e a maldição com o qual está jurado. A tetralogia é uma epopeia sobre o poder, o amor, a criação do mundo e sua destruição.

Assisti em Zurique, na Suíça, entre os dias 18 e 26 de maio passados, à nova produção do ciclo O anel do nibelungo realizada pelo teatro Opernhaus Zürich. Um Anel em Zurique tem um significado especial, pois foi nesta cidade que Wagner escreveu o libreto do drama e compôs, entre os anos de 1853 e 1857 as duas primeiras óperas do ciclo – O ouro do Reno e A valquíria – e o primeiro ato da terceira, Siegfried. Wagner abandou o trabalho então, retomando-o apenas 12 anos depois. A partitura completa de O anel do nibelungo foi finalmente terminada em 1874 e estreada em 1876, em Bayreuth.

Como normalmente se faz, também para esta nova produção de Zurique os diferentes títulos foram estreados em temporadas anteriores. E agora, então, o ciclo foi apresentado na íntegra, com as óperas em sequência, com alguns dias de intervalo entre elas. A direção musical e regência foi do maestro italiano Gianandrea Noseda, que também é o diretor musical geral da casa, e a direção cênica de Andreas Homoki. 

A encenação tem uma estrutura cênica básica que perpassa as quatro óperas. Um palco redondo, giratório, vai expondo sequencialmente quatro espaços cênicos parecidos, interligados por portas. As paredes são limpas e brancas, os poucos detalhes são painéis e linhas retas, um ambiente claro e “clássico”. Se em algumas partes do ciclo a solução da permanente estrutura giratória parece se esgotar – especialmente nas cenas exteriores, de natureza –, ela no fim convence pela unidade que confere à proposta e por estabelecer um ponto de apoio bem objetivo para a narrativa do drama.

Cena de A valquíria, de O anel do nibelungo de Zurique (divulgação, Monika Rittershaus)
Cena da ópera A valquíria de O anel do nibelungo de Zurique (divulgação, Monika Rittershaus)

Ao longo das óperas, vai se cristalizando a ideia de que o palco giratório também é uma sugestão do tempo que passa, inexorável, independentemente da fortuna ou da desgraça do que ocorre. Na derradeira cena do Crepúsculo dos deuses, a última ópera, a cortina se abre mais uma última vez para mostrar os ambientes brancos, vazios, com as portas abertas, girando. É como se, após o colapso final do mundo dos deuses, tudo estivesse de volta ao início pronto para uma nova criação...

No programa, o diretor cênico Homoki afirma que pretende voltar às origens e, com base no texto e na música escrita por Wagner, contar a história de “modo tão colorida e fantástica quanto ela realmente é”. Homoki diz que não pretende oferecer uma interpretação dos acontecimentos, mas sim os próprios acontecimentos, “da maneira mais lúdica, sensual, emocional, triste, engraçada, surpreendente e divertida possível”. E ele explica com um exemplo: “Não mostramos uma interpretação do que significa o dragão gigante, mas mostramos sim o próprio dragão gigante.” “Não quero dar ao espectador uma interpretação pronta, para ele engolir de boa-fé, mas quero convidá-lo para que ele encontre uma própria interpretação do que ele vê.”

Por meio da encenação de Zurique, o Anel ganhou uma narrativa muito direta dos acontecimentos, aproximando a história mais de um drama familiar do que de uma disputa entre deuses e seres mitológicos. Homoki realça a essência dos fatos e explora passagens cômicas do texto. Algumas cenas até chamam a atenção por uma certa simplicidade ou trivialidade, como, na segunda ópera, as valquírias perseguindo os heróis (eles vestindo umas mantas brancas esvoaçantes com espadinhas também brancas que pareciam de brinquedo) ou as bermudas e o comportamento meio adolescente do herói Siegfried...

Contudo, ao desnudar misticismos explorando relações “humanas”, a montagem ganha realidade e logra trazer para aqui e agora, de maneira viva e pungente, as grandes questões de nossa existência – a criação e a morte, a função da vida ou o dilema central e incontornável do amor contra o poder e vice-versa. 

Mas a emocionante experiência artística esteve sobretudo na performance musical, que se distinguiu por um brilhantismo raro, conduzida com precisão, musicalidade e senso teatral por Gianandrea Noseda. O incrível som orquestral que vinha do fosso – amplo leque dinâmico, articulações transparentes e ricos timbres –, em perfeito equilíbrio com as vozes do palco, proporcionaram um resultado no todo de altíssimo nível.

O espetacular elenco contou com solistas como Tomasz Konieczny (Wotan), Christopher Purves (Alberich), Camilla Nylund (Brünnhild) e Klaus Florian Vogt (Siegfried), todos excelentes. Konieczny é um artista de grande potência, Purves fez um Alberich visceral, Nylund criou cenas de alta energia dramática e Vogt se destacou por uma atuação sempre forte e ao mesmo tempo refinada. 

Igualmente marcantes foram as atuações de Wolfgang Ablinger-Sperrhacke (Mime), Claudia Mahnke (Fricka), Matthias Klink (Loge), Daniela Köhler (Sieglinde), Eric Cutler (Siegmund), David Leigh (Hagen) e Lauren Fagan (Gutrune), para citar apenas mais alguns dos ótimos artistas em cena. 

Nos últimos acordes, no Crepúsculo dos deuses, o deus Wotan, alquebrado e com sua lança em pedaços, observa a morada dos deuses Walhalla sendo consumida pelo fogo, enquanto as águas do Reno transbordam e inundam a terra... Fim. 

Ou recomeço?


PARA ASSISTIR
O ciclo O anel do nibelungo produzido pela ópera de Zurique foi filmado e será lançado no fim do ano pelo selo Accentus Music. Até o próximo dia 15 de junho, o site do Opernhaus Zürich dá acesso gratuito à gravação integral – clique aqui para acessar

Leia também
Wagner em Zurique, amores proibidos, por Nelson Rubens Kunze
Semper e Wagner, dois gênios e um pouco de história, por Nelson Rubens Kunze

Cena de O ouro do Reno (divulgação, Monika Rittershaus)
Cena de O ouro do Reno (divulgação, Monika Rittershaus)

 

Cena de Siegfried (divulgação, Monika Rittershaus)
Cena de Siegfried (divulgação, Monika Rittershaus)

 

Cena de O crepúsculo dos deuses (divulgação, Monika Rittershaus)
Cena de O crepúsculo dos deuses (divulgação, Monika Rittershaus)

 

Curtir

Comentários

Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.

É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.