Violonista e compositora tem obra estreada no Teatro Cultura Artística e participa do fórum “Abram alas: a batalha por equidade na indústria musical”, no Theatro Municipal de São Paulo
A violonista e compositora Elodie Bouny está em São Paulo para uma série de compromissos. Filha de mãe boliviana e pai francês, Elodie nasceu em Caracas, viveu a primeira infância na Bolívia, cresceu em Paris e, entre 2008 e 2020, morou no Rio de Janeiro, onde deu início à sua carreira profissional. O Brasil, diz ela, tem importância capital em sua trajetória, a ponto de considerar-se uma artista franco-brasileira. “Foram anos intensos”, afirma. “Eu acho que eu peguei um ‘jeito brasileiro’ pra várias coisas da vida. Eu me encontrei aqui.” Além do despertar profissional, Elodie tem dois filhos brasileiros, frutos de seu relacionamento com o também violonista Yamandu Costa, com quem foi casada entre 2007 e 2023.
E, se hoje ela é, além de violonista, uma compositora requisitada, isso se deve também à experiência brasileira. Elodie se formou em violão no Conservatório de Boulogne-Billancourt aos 18 anos. Uma formação tradicional, na qual sua vontade de escrever música e fazer arranjos não era apenas desestimulada mas até proibida. No Brasil, ela foi introduzida ao universo da música popular. “Era um outro mundo”, relembra. “Um outro fazer musical, que passa por caminhos totalmente diferentes da formação do músico clássico. A relação com a espontaneidade do músico, com a maneira de memorizar as coisas, o entendimento da harmonia funcional. Tudo que eu não tinha tido na minha formação.”
O ambiente da música popular no Brasil a libertou e liberou sua verve compositora e arranjadora. Elodie começou a trabalhar junto com Yamandu, escrevendo arranjos para obras menores e chegando até a peças orquestrais. Daí para a composição, foi um caminho natural. “Eu ficava surpresa em observar que quase todos os violonistas no Brasil também compunham, sem ter frequentado nenhum curso de composição. Não precisa de diploma pra ser bom, né?.”
Esse processo, que incluiu aulas com o pianista e arranjador Leandro Braga, muita análise de partituras e até material disponível na internet, culminou com aquele que ela julga ser seu trabalho mais importante até o momento: a ópera Homens de papel, uma encomenda do Theatro Municipal de São Paulo que estreou em 2022 junto de Navalha na carne, de Leonardo Martinelli, ambas inspiradas em obras de Plínio Marcos. Elodie afirma que “nunca estudou tanto” e que o processo de escrita, que durou cerca de um ano, teve muito de tentativa e erro. O libreto foi do dramaturgo Hugo Possolo. Ela diz que se apaixonou pelo universo operístico e que, “depois de provar dessa cachaça”, espera poder repetir a dose no futuro.
Na sexta e sábado, dias 13 e 14, o compromisso de Elodie está no Teatro Cultura Artística, onde vai acompanhar a estreia de Sonata prisma, obra comissionada pela entidade para a abertura da série de violão no novo teatro. O solista será João Camarero. Elodie e João se conheceram no Rio há mais de dez anos e ela não esconde admiração por este que é um dos mais notáveis nomes do violão brasileiro na atualidade. “Eu admiro muito o jeito dele de entender o instrumento. Como compositor, ele não é talvez tão conhecido, mas compõe temas pra violão, canções, e muito lindamente. É um multitalento”, afirma.
A relação entre compositor e o intérprete para o qual se escreve, tão comum na história da música, permite que, de um lado, compositor já escreva pensando nas possibilidades técnicas e artísticas do intérprete e, ao mesmo tempo, que haja uma colaboração entre ambos. Foi o que aconteceu com a obra, revisada a quatro mãos.
Elodie explica que, a despeito do nome, a peça não segue estritamente os moldes de uma sonata, embora se aproxime dela no tratamento dos temas e na maneira de modular. “A ideia do prisma tem a ver com qualquer processo de composição para mim” revela. “Muitas vezes parto de coisas muito pequenas, microtemas, encadeamento de acordes, texturas; enfim, coisas pontuais. E elas passam dentro de um prisma, que vai tratando e desdobrando aquela informação para chegar a uma peça maior.”
‘Pô, você toca bem, toca que nem homem’. Isso eu ouvi muito. Inclusive em concursos, e eu meio que forçava essa masculinidade, pra me adaptar. Até que fui entendendo que a feminilidade fazia parte da minha maneira de tocar, era algo bom. E comecei a me assustar com o que sempre ouvi. Me dei conta de que não era legal, não era normal. Acho que esse despertar não foi só meu, vi que eu não estava sozinha e podia conversar com outras mulheres
Também no sábado, e no domingo (14 e 15), Elodie participa do fórum “Abram alas: a batalha por equidade na indústria musical”, no Theatro Municipal de São Paulo. Ela lembra que, quando tinha 20 anos, o mundo do violão era, ainda mais do que hoje, muito masculino. “Nessa época, eu queria participar de concursos e não prestava muita atenção numa certa maneira de ser tratada, ou não me espantava tanto quando ouvia coisas como: ‘Pô, você toca bem, toca que nem homem’. Isso eu ouvi muito. Inclusive, e principalmente, em concursos, eu meio que forçava essa masculinidade, pra me adaptar. Até que, uns 10 anos atrás, eu fui entendendo que a feminilidade fazia parte da minha maneira de tocar, era algo bom, na verdade. Por outro lado, comecei a me assustar com o que sempre ouvi. Me dei conta de que não era legal, não era normal. Felizmente, acho que esse despertar não foi só meu, vi que eu não estava sozinha e podia conversar com outras mulheres.”
Hoje, Elodie nota que cresceu muito o número de mulheres no violão clássico e que as finais de grandes concursos de violão estão equilibradas em gênero. No entanto, no ambiente profissional, a desigualdade persiste. Por situações assim, espaços de discussão são tão necessários. “Acho que esse tipo de encontro é bom em vários níveis. Talvez no Brasil a questão do gênero na música não esteja tão em debate quanto na Europa. Então qualquer tipo de evento, ainda mais apoiado por grandes instituições, é muito necessário pra gente ter a exposição do assunto. E para, mais uma vez, sentir que não está sozinha. Eu penso nas mulheres que estão começando, que hoje têm 20, 25 anos, e que estão ainda procurando respostas e caminhos. Para essa juventude, principalmente, o encontro é muito importante.”
No evento, ela toca o repertório de seu disco Luares, lançado em 2023. Na sequência, parte para Tatuí, onde vai trabalhar com a Camerata de Violões do Conservatório da cidade na estreia de outra peça, Ecos Latinoamericanos. O giro brasileiro ainda inclui gravações com parceiros como Toninho Ferragutti, Renato Brás, Breno Ruiz e Pedro Iaco.
Veja mais detalhes sobre a apresentação de João Camarero
Veja mais detalhes sobre o fórum “Abram alas: a batalha por equidade na indústria musical”
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