Os mundos musicais de João Camarero

O reformado Teatro Cultura Artística abre sua tradicional série de violão com um artista versátil, que desafia rótulos e dilui fronteiras. Aos 34 anos, João Camarero empresta seu vigor e excelência técnica tanto ao repertório popular, quanto ao erudito.

O programa das apresentações dos dia 13 e 14 de setembro reflete essa variedade estilística. Começa com uma encomenda da Sociedade de Cultura Artística, a Sonata Prisma, de Elodie Bouny, e depois passeia por Radamés Gnattali, Garoto, Cristóvão Bastos, João Pernambuco, João Lyra, João dos Santos e Raphael Rabello.

Neste ano, Camarero apresenta-se ainda no Japão e no México. Em 2025, ele é o curador da nova série de jazz e música popular (ou músicas do mundo) do Cultura Artística. No ano que vem, deve ainda estrear uma outra encomenda da entidade: um concerto para violão e orquestra de cordas de Sergio Assad. E está preparando a gravação de um EP em volta do universo de Baden Powell.

Seu recital abre com uma peça nova de Elodie Bouny. Fale um pouco sobre ela.
Quando eles me convidaram para fazer a abertura, disseram que queriam encomendar uma peça para a ocasião, e que fosse uma compositora mulher. E chegamos ao nome da Elodie, que é uma amiga muito querida e uma super compositora, uma violonista excepcional. Estava tudo meio em casa. E ela escreveu uma sonata, a Sonata Prisma, que é uma peça linda, robusta e bem desafiadora. Estou malhando para estrear a peça! (risos) É uma peça super bem construída, com várias ideias de temas que vão sendo desenvolvidos, modulam, aquelas variações meio clássicas. 

O clássico me fez entender que é possível olhar para esse repertório do violão popular com esse acabamento todo, com esse pensamento também

A partir daí, como você montou o resto do programa?
A ideia geral é mais ou menos alinhada com o trabalho que eu venho fazendo como solista. É bem ligado ao “violão brasileiro”, com todas as aspas. Esse nome é bem genérico, mas a gente compreende o campo que ele abarca. O violão brasileiro em sua essência tem um pé em cada canoa, a do violão clássico e a do violão popular. Eu acho que a minha missão como músico, intérprete, solista do violão é jogar luz sobre esse repertório da mesma maneira que o repertório clássico, e não numa concepção de crossover, ou fusion. Mas numa ideia de que sim, é super possível a gente estrear uma sonata, tocar Garoto, tocar Radamés Gnattali… Eu acho que esses compositores e essas peças conversam perfeitamente, porque bebem de ambas as fontes. Eu acredito muito nesse potencial e nessa sofisticação que o violão popular brasileiro tem, e nas ramificações dos compositores. Acho que Radamés é um exemplo ótimo disso: alguém que escrevia de uma forma, mas tem ali uma “coisinha a mais” que não está escrita, um sabor, uma coisa que é da linguagem e tem a ver com essa vivência da música popular. Eu me sinto muito confortável nesse território, porque venho do violão popular do acompanhamento, do choro e, quando comecei a me desenvolver como solista, fui atrás da escola do violão clássico. Sempre ouvi muito violão clássico: mesmo antes de tocar, sempre ouvi muito Segóvia, Julian Bream, Fabio Zanon… Sempre fui muito fascinado por essa estética, essa concepção que eles têm de o instrumento ser uma mini-orquestra, com muito timbre, muita cor. E o clássico tem um rigor que me atrai, de precisão, de acabamento, de outro tipo de preocupações para as quais até então eu não tinha atentado. Era mais aquela coisa espontânea de tocar e fazer acontecer. O clássico me fez entender que é possível olhar para esse repertório do violão popular com esse acabamento todo, com esse pensamento também.

Você se considera como alguém que veio do popular e migrou para o clássico?
Eu não considero que eu tenha migrado para o clássico. Seria muita presunção da minha parte. Porque eu não tenho um repertório clássico, tipo Bach, eu não passei por essa escola de tocar todo o Tárrega. Mas, ao mesmo tempo, eu tenho muito apreço por esse repertório, gosto muito de tocar esses compositores nacionalistas como Manuel de Falla, Villa-Lobos, e que têm muito o sabor do lugar, na linha tênue entre a música de concerto e a música popular. Eu estou muito nesse miolo indefinido. Toquei o concerto de Villa-Lobos no ano passado e neste ano algumas vezes, e me sinto confortável de tocar esse repertório dessa maneira, ao mesmo tempo que me sinto confortável para sentar numa roda de choro e tocar João Pernambuco. Acho que, essencialmente, eu sou um músico de violão popular, venho dessa escola e tenho o maior orgulho disso. Mas o que tento dizer – não só aqui na entrevista, como musicalmente – é que sim, é possível pegar esse violão popular, dar esse tratamento e colocá-lo na sala de concerto lado a lado com todos os grandes compositores. Temos esse potencial dentro desse repertório, do nosso instrumento e da nossa tradição do violão popular brasileiro.

Eu não sinto que teve uma hora em que rompi com alguma coisa para começar com outra. Há muito tempo eu fazia com Vicente, por exemplo, os ‘Estudos’ de Carlevaro e aplicava isso em João Pernambuco, ou qualquer outro compositor popular. É até estranho pensar de forma separada

Conte um pouco da sua formação. Como você chegou ao violão? E como começou a tocar os clássicos?  
Eu comecei um pouco tarde. Sempre tive uma ligação com música desde criança, toquei um pouco de piano, depois um pouco de bateria, aquelas coisas de moleque. Comecei no violão com mais ou menos 15 anos de idade. Eu entrei super atraído pelo choro, pela música popular, pelo violão do Dino 7 Cordas, um violão de acompanhamento, e também por Baden Powell. Eu ouvi aquele disco Solitude on Guitar, aquela primeira faixa, e disse: “nossa, o que é isso?” Eu nem sabia que isso existia. Foi um choque. E me aventurei pelo universo da música popular, principalmente também por causa do universo da poesia de Vinícius de Moraes. Entendi que Vinícius tinha essa conexão com o universo da música popular, e através dele cheguei em Baden, em Dino, nos discos do Cartola. Foi meio que uma porta para esse mundo mágico. Para minha sorte, na minha cidade, que é Avaré, no interior de São Paulo, tem um pessoal que toca. Tinha um professor de sete cordas bem tradicional que me deu aulas. Tinha uma mulher que cantava, muito amiga da minha mãe, e me apresentou esse mundo encantado da música. Ela viu que eu estava interessado em violão, e era uma pessoa muito culta: ela tinha tudo da história do choro, do violão clássico, da bossa nova, coleções, livros, e foi me aplicando isso. O primeiro disco do Segóvia que eu ganhei foi dela. John Williams tocando Barrios, Julian Bream… Foi muito junto: eu comecei tocando acompanhamento, mas ao mesmo tempo me encantei com o violão clássico, o violão solo. Fui estudar com esse professor de sete cordas, depois estudei um pouquinho de violão solo, mas de maneira bem intuitiva – fui lendo umas coisas e tocando do jeito que eu achava que era. Depois entrei no Conservatório de Tatuí, passei no curso de violão clássico mas não fiz, porque naquela época eu estava com a faca na bota, querendo tocar. (risos) Eu queria tocar na roda de samba, tocar choro, não queira saber. Eu me lembro de que na época o professor disse: “você pode fazer um aperfeiçoamento de técnica”. E eu disse: “não, não quero ser concertista, não quero saber de nada disso”. Daí posteriormente eu fui para o Rio, e lá encontrei João Lyra, que para mim é um grande mestre do violão popular, e foi ele quem botou na minha cabeça: “você tem que fazer uma coisa como solista também, você tem capacidade, precisa se desenvolver, vai ser bom para você profissionalmente”. E fui fazer aula com ele e com o Vicente Paschoal, que já é um cara do clássico, um grande professor de violão. E através do Vicente eu conheci esse outro mundo encantado do violão clássico no Brasil. O Vicente é muito próximo do luthier Ricardo Dias e do Sérgio Abreu. Então fiquei muito amigo do Sérgio Abreu e do Ricardo Dias, que foram os caras que me deram a chave para esse outro mundo. Aprendi muito com eles não só sobre violão clássico, mas também sobre o instrumento em si: tipo de construção, tipo de concepção. As coisas acabaram acontecendo de maneira muito integrada. Eu não sinto que teve uma hora em que rompi com alguma coisa para começar com outra. Há muito tempo eu fazia com Vicente, por exemplo, os Estudos de Carlevaro e aplicava isso em João Pernambuco, ou qualquer outro compositor popular. É até estranho pensar de forma separada. 

Você acha que o violão é um instrumento que se presta mais a um diálogo orgânico entre esses dois mundos? Ou não necessariamente?
Pergunta excelente. Eu acho que sim. Faz todo o sentido. Porque o violão é essencialmente um instrumento popular e de acompanhamento. A gente se prestar ao violão solista já é um esforço a mais. Claro que qualquer solista se esforça, mas o violão é um instrumento concebido para o acompanhamento, essencialmente. No Brasil, todas as manifestações de música popular, especialmente as urbanas, acontecem em volta de um violão. É um instrumento que é barato, é portátil, se você aprende a fazer meia dúzia de acordes você já pode compor, já pode tocar com os amigos. É um instrumento extremamente sociável. Eu acho que o caráter intimista do violão também favorece muito isso. Sim, ele é um instrumento da música popular. E ele facilita sim essa abertura para esse repertório híbrido. E o que me deixa confortável é que, no meu ponto de vista, historicamente o violão brasileiro vem dessa gênese. Porque se você pega os pioneiros, desde João Pernambuco, Sátiro Bilhar, Quincas Laranjeiras… Quincas Laranjeiras foi um professor de violão pioneiro, e era um dos poucos que lia música. Ele tocou na banda de música da fábrica em que trabalhava, e ensinava violão “por música”, por método clássico. É muito curioso isso. Se você analisar historicamente, os caras que estavam ensinando violão popular faziam-no através de métodos clássicos. Desde a gênese do nosso violão isso está misturado. E acho que isso contribuiu também para essa sofisticação, não só musical, natural das pessoas e da complexidade da nossa música popular, mas também contribuiu para a parte técnica do instrumento. Não é fácil você tocar bem choro, ou uma peça do João Pernambuco.

Por que a escola brasileira de violão clássico é tão forte? Teria a ver com essa relação com o popular?
Boa pergunta. Nunca parei para pensar. Talvez isso tenha contribuído, sim. Porque você pega o Duo Abreu, Sérgio e Eduardo Abreu. O avô deles, Sérgio Rebello, além de construir violão e ser um grande professor do instrumento também tocava violão popular, tocava choro, frequentava a casa do Jacob do Bandolim… Então eu acho que existia um núcleo de excelência de música e ponto. Tinha o choro, tinha o Radamés compondo concertos, era o Duo Abreu tocando no mundo todo peças contemporâneas, peças antigas, clássicas, com aquele rigor estético, mas eu acho que estava tudo mais junto. E isso pode contribuir, sim, para uma musicalidade mais complexa, talvez. Porque a gente sempre teve grandes violonistas clássicos: Fabio Zanon, Duo Siqueira Lima, Paulo Martelli, posso enumerar vários aqui. Talvez pelo violão ser o instrumento do Brasil isso também contribua de alguma maneira para o violão clássico.

Seu recital não apenas abre a série de violão do Cultura Artística, como é a primeira apresentação desta série no teatro reformado. O que isso representa para você?
Eu acho esse momento muito simbólico mesmo. Por tudo que o Cultura Artística representa, por tudo que esse repertório representa, essa força do violão brasileiro… Para mim é uma honra imensa. O Cultura Artística sempre foi um lugar de referência para mim, e a história do Cultura Artística é muito bonita, de muita excelência, desde a primeira inauguração, com Villa-Lobos, Guarnieri… Fico realmente lisonjeado por fazer essa estreia. É muita responsabilidade. Estou estudando para caramba! E acho que representa também esse novo momento do Cultura Artística, de reposicionar o teatro como uma casa de música, não mais uma casa também das artes cênicas. Representa também um aceno para uma abertura para além da música clássica – claro que a espinha dorsal é e vai continuar sendo a música clássica, mas já é um começo de novos ares, de coisas novas que podem acontecer ali dentro. Até porque estamos em 2024. É uma instituição de música na cidade mais rica da América Latina, e a gente tem que olhar para o contexto como um todo. Tenho certeza de que aquele é um lugar de amálgama musical, e não segregação, não encastelar um tipo de música inacessível. Tem esse símbolo também. De tornar aquilo uma casa de diálogo e de música e ponto.

Você é jovem. Chegou a conhecer o antigo Cultura Artística?
Não. Eu estava fora de São Paulo. Vai ser uma coisa muito especial porque quem me apresentou ao Cultura Artística, Osesp, salas de concerto, à grande coisa da música de São Paulo foi a minha avó, que faleceu recentemente, com 98 anos. Ela era a minha maior entusiasta, há pouco tempo foi me assistir tocando Villa-Lobos com orquestra. Estava lúcida, ótima, e super entusiasmada com esse concerto. Ela frequentou muito o Cultura Artística. Para mim, pessoalmente, acrescenta mais essa camada simbólica, familiar, de muito afeto, muito amor, não só pelo contexto de músico, mas também pelo lugar. O Cultura Artística é um lugar em que eu sempre quis estar, de uma maneira ou de outra: tocando, trabalhando, etc. Inclusive estou contratado até o final de dezembro para programar jazz e música popular por lá.

Obrigado pela entrevista.

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João Camarero [Divulgação/Gil Inoue]
João Camarero [Divulgação/Gil Inoue]

 

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