Masaaki Suzuki: “Eu não escolhi Bach, de certa forma fui escolhido por ele”

por Camila Fresca 24/08/2023

Fundador do Bach Collegium Japan, o maestro Masaaki Suzuki é o convidado da Osesp para os programas dessa semana. Filho de músicos amadores, também cravista e organista, ele explica que Bach estava “em todo lugar” em sua infância. Depois de estudar na Alemanha, voltou ao Japão no início da década de 1980 como professor universitário. Pouco tempo depois de fundar o Bach Collegium, surgiu a oportunidade de gravar as cantatas completas de Bach. O projeto foi crescendo e Suzuki liderou a gravação da obra vocal do compositor, bem como registrou todas as peças para cravo e uma parte das de órgão, além das Paixões segundo São João e São Mateus. Tudo isso faz com que seja reconhecido, na atualidade, como uma das autoridades na obra do compositor. Na segunda-feira, logo após seu primeiro ensaio com o Coro da Osesp, Masaaki Suzuki falou com o Site CONCERTO sobre seu trabalho com a música de Bach. 

De que forma se deu sua descoberta de Bach? 
Eu comecei tocando órgão na igreja, durante os serviços religiosos, ainda menino. Então Bach estava em todo o lugar. Mas eu nem mesmo acredito que escolhi Bach como meu compositor favorito; ao contrário, eu de certa forma fui escolhido por ele. É claro que também toco e gosto de outros autores. 

Mas em algum momento Bach se tornou central, já que o senhor fundou o Bach Collegium Japan, em 1990. 
Certamente, Bach era o centro, mas eu queria fazer o repertório barroco com instrumentos de época, até que surgiu a oportunidade de gravar as cantatas de Bach. Então, desde 1995 até bem recentemente, nós não tivemos oportunidade, nem tempo, de fazer outra coisa. Mas minha intenção desde sempre era não apenas fazer Bach, e sim música sacra, música de igreja. Fizemos muita coisa, mas em termos de gravação nos concentramos em Bach. Terminamos agora o registro de todas as suas obras vocais, e estamos felizes em pensar em fazer outras coisas, como Mozart, Beethoven ou Mendelssohn, uma música um pouco posterior. 

Mas por que criar um grupo próprio para tal objetivo? 
Na verdade, quando começamos nossa atividade, em 1990, não havia no Japão outros grupos, mas apenas conjuntos pequenos, nenhuma orquestra estabelecida. Então primeiro precisávamos ter uma atividade regular com instrumentos de época. 

O senhor também fundou, na década de 1990, o departamento de música antiga da Tokyo University of the Arts. Àquela altura, em que estágio se encontravam as pesquisas e a performance de música antiga no Japão?
Havia um número expressivo de músicos terminando seus estudos na Europa e retornando ao Japão, então estávamos num momento muito bom para iniciar um departamento de música antiga. Ao mesmo tempo, havia jovens músicos com vontade de estudar música antiga profissionalmente. E também os instrumentistas modernos estavam cada vez mais interessados em conhecer não apenas a técnica dos instrumentos de época, mas também os diferentes estilos de performance. Para os cantores, por exemplo, o departamento de música antiga teve uma grande influência, benéfica, no departamento de canto tradicional. Foram trocas muito boas que o departamento proporcionou. 

Hoje em dia a formação dos músicos é mais flexível e aberta, e acredito que estamos num momento muito bom para estabelecer colaborações entre grupos de música antiga e orquestras modernas. 

Esta semana, o senhor rege em São Paulo a orquestra e o Coro da Osesp. A Osesp é uma orquestra moderna que, como muitas outras, dedica-se principalmente ao repertório dos séculos XIX e XX. O que um especialista como o senhor pode fazer em uma semana de trabalho com uma orquestra padrão em relação às especificidades do repertório barroco?
Confesso que, alguns anos atrás, eu evitava fazer Bach ou o repertório barroco com orquestras modernas. Era muito mais fácil fazer com instrumentos de época. A maioria das orquestras modernas é muito ocupada, elas não têm tempo de experimentar outros instrumentos, ou de experimentar cordas de tripa, e isso me desanimava. Mas, hoje em dia, tenho encontrado muito boas orquestras modernas que estão interessadas em fazer outros estilos; e eu também, mais recentemente, passei a aceitar esse tipo de projeto. Não é fácil, claro, mudar de estilo para se fazer essa música. Mas ao mesmo tempo, eles estão acostumados a serem flexíveis. E hoje em dia, sendo também mais velho do que eu era no passado, tenho mais flexibilidade, generosidade, e tenho aproveitado muito o trabalho com bons músicos, não importa quais instrumentos eles toquem. 

Acredito que seja uma tendência atual tratar o repertório barroco com mais flexibilidade e aceitar fazê-lo com conjuntos modernos, algo que não acontecia tempos atrás, quando só os grupos de música antiga pareciam “autorizados” a isso. 
Gerações mais antigas, de Gustav Leonhardt ou Nikolaus Harnoncourt, tiveram que lutar contra as noções, os conceitos estabelecidos. Porque a maioria dos instrumentistas de orquestra costumava estar presa num único estilo de tocar, aquele no qual haviam sido educados. Hoje em dia a própria formação dos músicos é mais flexível e aberta, e acredito que estamos num momento muito bom para estabelecer colaborações entre grupos de música antiga e orquestras modernas. 

A colaboração dos cantores e instrumentistas, tendo como ponto de partida o texto, é um aspecto central na música vocal de Bach

Poderia falar sobre as três obras do programa – a abertura da Suíte Orquestral nº 3 BWV 1068, a Cantata Meine Seel erhebt den Herren BWV 10 e o Magnificat BWV 243. Como elas dialogam entre si? 
Bem, esse programa consiste de obras brilhantes, um lado festivo da música de Bach. A começar pela abertura da Suíte, que é uma abertura francesa muito viva e que pode ser feita muito bem com uma orquestra moderna, instrumentos modernos. Ela funciona como a abertura do concerto. Em segundo lugar, temos a Cantata, que nada mais é do que a tradução alemã do texto em latim do Magnificat, que faremos na segunda parte. Ela pertence ao segundo ano de Bach em Leipzig, 1724, ou seja, logo estaremos comemorando o terceiro centenário dessa obra. Canto coral é um canto de congregação, que era a mais importante fonte musical da época. Na verdade, só bem depois da época de Bach, no século XIX, é que o canto congregacional se tornou algo totalmente diferente da prática de concertos em geral. Essa cantata é um típico exemplo de como Bach compunha baseado em melodias corais [chorale melodies] para expressar o contexto, explorando a figuração musical. Na segunda metade teremos o Magnificat, normalmente cantado no início de julho, simbolizando a Visitação de Maria [com texto do evangelho segundo São Lucas, Magnificat é um cântico entoado pela Virgem Maria por ocasião da visitação a sua prima Isabel, grávida de João Batista]. Esse Magnificat não é muito longo, só 30 minutos, mas é um exemplo maravilhoso da densidade da música de Bach; tudo nele é compacto e dramático, com tipos variados de árias para soprano, duetos, tercetos etc. É uma espécie de mini menu do estilo musical de Bach. 

Depois de gravar toda música vocal de Bach com seu grupo, a sua visão sobre essas composições é muito diferente daquela que tinha em 1990?
Sim, claro, estou ficando velho [risos]. Mas a abordagem básica nunca mudou. Acredito que a interpretação da música de Bach deve estar estreitamente ligada com o entendimento do texto e sua pronúncia. Música e texto devem se integrar; por exemplo, os instrumentistas devem articular muito bem as notas com o objetivo de “falar”, como se eles próprios também tivessem que enunciar o texto com seus instrumentos. Tive hoje um primeiro ensaio com o coro, eles são muito bons, mas os cantores devem também trabalhar um pouco como os instrumentistas, porque as linhas de Bach são complexas, há figurações não apenas bonitas, mas muito complicadas, cheias de símbolos. A colaboração dos cantores e instrumentistas, tendo como ponto de partida o texto, é um aspecto central na música vocal de Bach. Suas cantatas de igreja são muito adequadas para se apreciar a complexidade das linhas polifônicas, das cores e estilos.

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Masaaki Suzuki [Divulgação/Marco Borggreve]
Masaaki Suzuki [Divulgação/Marco Borggreve]

 

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