Só a incrível vira-latice de uma elite que teima em se enxergar como estrangeira em seu próprio país explica por que no Brasil tenhamos negligenciado por tanto tempo um músico do quilate de Francisco Mignone (1897-1986). Felizmente parece haver motivos para achar que este jogo está virando. Em 2022, Fabio Zanon gravou uma primorosa integral dos estudos para violão do compositor e, neste ano, Mignone foi o protagonista de dois eventos marcantes de nossa vida musical: a performance da ópera O contractador dos diamantes, em abril, no Festival Amazonas de Ópera, em Manaus e, agora, ao longo de duas semanas, a apresentação e gravação integral das quatro Fantasias brasileiras para piano e orquestra, além da Burlesca e Toccata, pelo pianista Fábio Martino, acompanhado pela Osesp, na Sala São Paulo, sob regência de Giancarlo Guerrero.
Embora completamente independentes, as iniciativas de Manaus e São Paulo ajudam a traçar um período definidor na trajetória de Mignone. O Contractador, de 1922 (estreia em 1924), mostra um sério candidato a sucessor de Carlos Gomes e completamente imbuído do espírito da assim chamada giovane scuola italiana – não apenas é cantado neste idioma, como faz lembrar Cilea, Giordano e o inescapável Puccini.
A inspiração melódica cativante de Mignone parecia destiná-lo a uma carreira operística e, em 1927, ele compôs, também em italiano, sua segunda ópera, L’Innocente. Embora provasse “a cultura do músico, as suas possibilidades”, a partitura fez acender todas as sirenes da patrulha ideológica do guru do nacionalismo musical brasileiro, Mário de Andrade, para o qual a ópera era desprovida de “valor nacional”, pertencendo, portanto, à música italiana: “a música brasileira fica na mesma, antes e depois dessa ópera. E é por isso que considero o caso de Francisco Mignone bem doloroso”.
A crítica calou fundo no coração do jovem compositor. Em suas próprias palavras, “para não ser considerado uma reverendíssima besta”, o músico embrenhou-se “no cipoal da missa nacionalista”. E daí surgem, entre 1929 e 1936, quase como resposta (e submissão) às críticas de Mário, as quatro fantasias brasileiras para piano e orquestra (dentre as quais a primeira mereceu performance, da qual existe gravação, sob a batuta de ninguém menos do que Arturo Toscanini, com a NBC Orchestra, e o pianista campineiro Bernardo Segall).
Como Rachmaninov, Prokófiev e Chostakóvitch, Mignone foi um musicista completo. Além do talento inegável como compositor, chegou a ser festejado por Mário de Andrade como “maior regente nacional”, e possuía inegável destreza ao piano, para o qual escreveu nada menos que 232 peças solo. Como escreveu Vera Astrachan, “não há dúvida de que Mignone foi um compositor organicamente voltado para o piano. Com o domínio que possuía do instrumento, escreveu 'pianisticamente', isto é, manipulou as dificuldades pianísticas de tal maneira que as mais transcendentais passagens sempre parecem perfeitamente realizáveis e acessíveis ao instrumentista”.
Saboreando o refinado pianismo de Mignone, Fabio Martino sabe aliar ginga e precisão, lirismo e sonoridade vigorosa, agilidade e uma capacidade de timbrar de forma distinta os diversos registros do instrumento
Por sua proximidade temporal, e por terem sido estreadas todas pelo mesmo solista (Souza Lima), as Fantasias podem ser vistas como um ciclo. Se cada uma possui características específicas, podem ser identificados traços em comum, como a imaginativa instrumentação, a rítmica forte, o melodismo cativante e surpreendentes elementos do que na época poderia ser considerada uma linguagem musical moderna, sobretudo do ponto de vista harmônico. Mignone aponta para um nacionalismo que se recusa a ser provinciano, uma “brasilidade” que não exclui o cosmopolitismo.
Infelizmente não pude comparecer à primeira semana de concertos, em que foram apresentadas as duas primeiras fantasias e a Burlesca e Toccata. Mas foi inspirador conferir a química entre Martino, Guerrero e orquestra na sexta-feira, dia 18, quando tocaram-se as duas últimas fantasias.
Radicado na Alemanha, Fábio Martino não é desses intérpretes que aprendem nossa música de má vontade, apenas para projetos pontuais. Ele incluiu compositores brasileiros em mais de um de seus discos, e chegou a tocar a Fantasia nº 4 em um concerto de Ano Novo na terra natal de Mozart, Salzburgo.
Saboreando o refinado pianismo de Mignone, Martino sabe aliar ginga e precisão, lirismo e sonoridade vigorosa, agilidade e uma capacidade de timbrar de forma distinta os diversos registros do instrumento. Ele tem uma identificação óbvia e profunda com o estilo das Fantasias e, de forma extrovertida, tirou a Osesp para dançar na Sala São Paulo. E talvez não houvesse parceiro melhor para essa dança que o também caloroso Giancarlo Guerrero, um convidado de luxo que, ao longo dos anos, vem sendo o responsável por algumas das melhores performances da Osesp, arrancando a orquestra da modorra burocrática que no passado tantas vezes transformava a ida à Sala São Paulo em uma experiência entediante.
Mas os tempos parecem também ser outros na sala de concertos que é o orgulho justificado do público paulista. As nuvens carregadas que por treze anos pairaram sobre o local se dispersaram. O ambiente é mais leve, mais democrático, e isso forçosamente se reflete no fazer musical. A Osesp está recuperando a alegria de tocar. E essa alegria é muito boa de ouvir.
Leia também
Crítica ‘Missa’ de Carlos Gomes ganha leitura admirável em primeira apresentação completa desde 1854, por Jorge Coli
Crítica Na noite de Tosca, sucesso fica por conta de Cavaradossi e Scarpia, por João Luiz Sampaio
Notícias Filme sobre Leonard Bernstein ganha trailer e primeira polêmica
Notícias Morre na Itália, aos 89 anos, a soprano Renata Scotto
Notícias Orquestra Acadêmica de São Paulo encena ópera ‘La traviata’, de Verdi
Opinião Uma editora para todas as músicas do mundo, por João Marcos Coelho
É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.
Comentários
Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.