Carlos Kater publica ‘Encontros com Villa-Lobos’

por Camila Fresca 23/06/2024

E-book de mais de 600 páginas traz entrevistas do autor com personalidades que conheceram e conviveram com Heitor Villa-Lobos

No final da década de 1970, Carlos Kater era um jovem músico que cursava doutorado na Sorbonne, em Paris. Foi no velho continente, distante alguns milhares de quilômetros da terra natal, que ele de fato conheceu a música de seu país. Ao final de sua estadia, convencido da urgência em estudar a música do Brasil de forma sistemática, foi inevitável se deter num personagem: Heitor Villa-Lobos. 

A partir de 1981, de volta ao Brasil, Kater iniciou um projeto, sem um planejamento pré-definido, de entrevistar personalidades da música brasileira que haviam convivido com Villa-Lobos. Praticamente todas as entrevistas foram registradas com um gravador cassete e, mais raramente, com uma câmera Super-8 – recursos tecnológicos acessíveis na época. 

Nesse meio tempo, Kater, que além de musicólogo é compositor e educador musical, foi professor universitário e publicou livros de referência sobre o Movimento Música Viva e a compositora Eunice Katunda.  40 anos depois – e com muitos dos entrevistados já não mais por aqui – ele decidiu transcrever e reunir todas essas conversas num livro digital recém-lançado, intitulado “Encontros com Villa-Lobos” e que pode ser baixado gratuitamente aqui.

Falam sobre o compositor Luiz Heitor Corrêa de Azevedo, Magdalena Tagliaferro, Francisco Mignone, Camargo Guarnieri, Arminda Villa-Lobos, Eleazar de Carvalho, Anna Stella Schic, Souza Lima, Homero Magalhães Carmem Dulce M.M., Pierre Vidal, Eunice Katunda, Gerardo Parente, José Vieira Brandão, H.J. Koellreutter, George Olivier Toni e Salomea Gandelman (esta, a única a ser entrevistada mais recentemente, em 2021).  Há algum tempo, as entrevistas já vinham sendo lançadas individualmente em seu site pessoal. Mas agora, reunidas, elas tomam outra dimensão. 

Com mais de 600 páginas, o livro vai além de apenas transcrever as entrevistas – o que já seria de um valor inestimável. Além da generosidade de tornar público um material que poderia guardar para si, Kater introduziu as entrevistas com uma nota biográfica de cada interlocutor; fez “notas de diário”, nas quais revela sua relação com o entrevistado e as condições em que a conversa ocorreu; incluiu notas de referência, na qual localiza as informações dadas por eles; e ao final de cada conversa, listou uma “bibliografia útil” com títulos que aprofundam temas abordados ou ajudam a conhecer melhor o entrevistado. O final do livro ainda traz uma cronologia e uma lista de referências. 

Todo esse volume de informações é apresentado de forma interativa: é fácil ir até o conteúdo que se quer – por exemplo, ler uma nota de referência – e voltar à entrevista, ou ainda retornar ao sumário. Tudo pode ser feito com cliques na própria página em que se está, e os mais curiosos poderão ouvir a voz de todos os entrevistados – há links que levam para trechos das entrevistas no Soundcloud. 

Evidente que o mais importante, no entanto, são as próprias entrevistas. O musicólogo Luiz Heitor Corrêa de Azevedo, que conviveu estreitamente com Villa-Lobos entre as décadas de 1930 e 50, disse por exemplo que o compositor nunca foi pianista e não era capaz de tocar a maior parte de sua obra. “Mas as coisas mais fáceis ele tocava e... tocava com um encanto extraordinário! Isso eu vi e ouvi. Presenciei muitas vezes ele se pondo ao piano para exemplificar para pianistas que iam pedir sua opinião, mostrando como é que eles deveriam tocar. E quando aquilo soava, saindo das mãos dele, era um mel... e muito sóbrio em geral”, revelou. 

Em outro ponto dessa entrevista, Kater pergunta a Luiz Heitor qual foi a participação efetiva de Villa-Lobos na política, especificamente durante o Estado Novo (quando foi desenvolvido o projeto de Canto Orfeônico): “Foi esse o tempo da chamada cooperação de Villa-Lobos com a ditadura. Cooperação que não foi nem maior nem menor do que a de outros grandes artistas, como Oscar Niemeyer ou Cândido Portinari, que eram, tanto o arquiteto, como o pintor, artistas oficiais do regime; sendo embora um e outro homens de esquerda”, afirmou taxativo. 

Entrevistando a compositora Eunice Katunda, Carlos Kater se espanta ao saber qual a obra de Villa-Lobos que ela mais admirava: o Rudepoema. “O Rudepoema é uma das obras mais importantes do século! Em todos [aspectos], como concepção, como expressão. Como obra expressionista, como obra pianística. Nunca se escreveu coisa tão importante para piano como o Rudepoema! Nem o próprio Stravinsky”. O pianista Homero Magalhães partilhava de opinião semelhante: “Na minha opinião a grande época do Villa-Lobos, em matéria pianística, foi a década de 20, quando ele compôs as suas melhores obras, como o Rudepoema, que é um prodígio de exploração do piano. E sobretudo as Cirandas, pela simplicidade dos temas que ele utiliza e aqueles pequenos poemas lindíssimos que ele constrói. Depois tem também A prole do bebê nº 2”.

As entrevistas nos dão muitas pistas de como era a personalidade do compositor, suas vaidades, inseguranças e generosidades. E há, claro, muitas histórias engraçadas, como as que contou o maestro Olivier Toni: “Num intervalo entre as músicas nós estávamos tomando café, chegou um músico e perguntou para ele: – Qual é o modo que tem na sua peça? Ele falou: – É um modo lídio, um modo nordestino. [...] – Ué, um modo lá no Nordeste? E ele falou: – Claro! Eu entendo muito mais de antropologia do que esta gente por aí. Isso aí prova que os gregos estiveram no Nordeste antes”. Toni nunca se esqueceu dessa conversa, já que naquela época tinha estudado o assunto na faculdade e, incrédulo, se perguntava: “Meu Deus, será que ele está brincando ou que ele não sabe mesmo, tá falando sério?”.

Os temas e histórias que se pode levantar dessas entrevistas são inúmeros, a depender do interesse do leitor. E o final do livro ainda guarda um pequeno tesouro: uma entrevista do próprio Villa-Lobos, dada a Madeleine Milhaud (esposa do compositor Darius Milhaud) em Paris em 1952. Ali está o compositor por inteiro: sua visceralidade, suas opiniões ora apaixonadas, ora confusas e desconcertantes sobre o mundo musical. Há pontos inclusive problemáticos nas respostas de Villa-Lobos. Contudo, prefiro encerrar com uma bonita fala sua, logo no início da entrevista: “[...] eu compreendi rapidamente, antes de conhecer qualquer pessoa na Europa, que para possuir algo original no terreno da imaginação, eu deveria procurar na natureza. E como a natureza de meu país é muito rica e variada, é muito lírica e trágica, tem todo tipo de coisa que pode servir a um artista, seja músico, pintor, ou outro, eu, eu penetrei na alma do povo, na natureza! Pesquisei os ruídos de todos os rios, das fontes, dos índios, dos negros, dos pássaros – a imensa quantidade de pássaros que nós possuímos – e então trabalhei, como alguém que trabalha num laboratório, pesquisando o meio de encontrar minha personalidade [...]”.

Carlos Kater, autor de ‘Encontros com Villa-Lobos’ (reprodução, YouTube)
Carlos Kater, autor de ‘Encontros com Villa-Lobos’ (reprodução, YouTube)

 

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