Coro da Osesp brilha em concerto dedicado a compositoras

por Camila Fresca 25/06/2024

No último domingo, sob regência do maestro William Coelho, o Coro da Osesp realizou um programa todo dedicado a obras de compositoras. A apresentação integra uma temporada especial para o grupo, em que comemora seus 30 anos de existência. 

O final de tarde começou com Amy Beach, primeira compositora norte-americana que, na virada do século XIX para o XX, teve uma sinfonia estreada e pôde desfrutar de considerado prestígio profissional. Após os singelos Três coros de Shakespeare, para vozes femininas a capela, ouvimos Sea fever (Febre marítima), agora só com vozes masculinas. Os tenores e barítonos do coro sentaram-se no chão do palco para cantar o poema de John Masefield, transformado numa obra épica pela música impressionante de Beach, que, por meio do piano (a cargo de Fernando Tomimura, pianista do Coro da Osesp) simulava marés e ventos. 

Vozes femininas e masculinas do Coro da Osesp se reuniram para interpretar a linda e triste Resignation (Resignação), de Florence Price, outra norte-americana e primeira autora negra a ter uma obra orquestral estreada. Com texto da própria compositora, a obra fala sobre uma vida dura de trabalho e a esperança no amanhã, e é um típico negro spiritual. Além da interpretação precisa e sentida do coro, Resignation teve belos solos da soprano Marina Pereira. 

Depois de canções de Ethel Smyth, compositora inglesa que foi uma ativa defensora do sufrágio feminino, e de Undine Smith Moore, tivemos a peça central do programa, nos silêncios da tua voz, de Valéria Bonafé. Sua peça, para vozes femininas, cinco narradoras e instrumentos ressonantes, foi uma encomenda do coro que acabou tendo sua estreia adiada por conta da pandemia.

Com 20 minutos de duração, nos silêncios da tua voz teve o texto elaborado a partir da escuta compartilhada pelas artistas Lidia Bazarian, Mariana Carvalho, Tatiana Catanzaro e Lílian Campesato da obra Ouço vozes que se perdem nas veredas que encontrei, de Jocy de Oliveira, também escrita para vozes femininas. 

Valéria Bonafé é uma das vozes mais interessantes e preparadas da composição brasileira e é sempre instigante ouvi-la

Sussurros iniciaram a peça, numa Sala São Paulo ambientada com luzes amarelas no palco contrastando com a plateia, mergulhada na escuridão. Enquanto o coro fazia vocalizações, as cinco solistas, posicionadas em frente ao palco e sentadas atrás de mesas iluminadas por abajures que se acendiam e apagavam, recitavam seu texto alternadamente ou, em alguns poucos momentos, simultaneamente. De tempos em tempos, sons de sinos espacializados cruzavam a escuridão do ambiente. O texto era a transcrição das conversas das artistas. Como num jogo de espelhos, é uma obra que nasce da escuta de outra obra e que incorpora em seu texto a descrição das sensações que a obra original causara. Foram também sussurros que encerraram a peça.

nos silêncios da tua voz é uma obra experimental e confesso que não cheguei a uma conclusão sobre a efetividade da utilização tão literal dos textos – conversas informais e por vezes confessionais das artistas. O incômodo do público, como costuma acontecer quando se executam obras que fogem da linguagem convencional, se manifestava por meio das insistentes tossidas. Mas não se trata aqui de gostar ou não, e sim de louvar a iniciativa da Osesp em bancar novas obras que apostam no desconhecido, bem como louvar o comprometimento do Coro da Osesp em sua execução. Aos 40 anos de idade, Valéria Bonafé é uma das vozes mais interessantes e preparadas da composição brasileira e é sempre instigante ouvi-la. 

O concerto seguiu com O sapientia (Ó sabedoria), da eslovena Tadeja Vulc, que acrescenta às vozes sonoridades feitas com as mãos e pés dos cantores, e a tocante To see the sky (Para ver o céu), dedicada à memória de uma amiga da compositora Jocelyn Hagen. Quem esteve na Sala São Paulo ouviu ainda Media Vita (Na metade da vida), de Kerensa Briggs, e Upon your heart (Em seu coração), de Eleanor Daley.

A parte final teve And the swallow (E a andorinha), peça da violinista, cantora e compositora Caroline Shaw, uma das expoentes da composição contemporânea, e Vozes-mulheres, de Juliana Ripke. A pianista, arranjadora e compositora paulistana tem se destacado no cenário da música de concerto por diferentes trabalhos que demonstram sua versatilidade e preparo. Vozes-mulheres, inspirada no poema homônimo da escritora Conceição Evaristo, é lírica mesmo quando o texto narra as duras experiências das vozes femininas maltratadas nos porões dos navios e nas cozinhas. A obra, que encerrou o concerto, foi outra estreia da noite e é dedicada ao Coro da Osesp e ao maestro William Coelho. 

Aliás, vale notar a sensibilidade de William Coelho ao montar com cuidado um concerto dedicado a compositoras – e com expressiva presença de compositoras negras – como um dos destaques da programação do Coro da Osesp, do qual é maestro preparador desde 2019. Em entrevista ao Site CONCERTO, ele menciona certo constrangimento em, como homem, liderar um programa dedicado a mulheres. Pois vejo a questão de forma oposta: é ótimo que a música de mulheres seja pesquisada, estudada e interpretada por homens em posição de liderança. Só assim elas poderão ser de fato incorporadas ao repertório central da música de concerto, e não apenas serem vistas como curiosidade ou um nicho (de mulheres falando para mulheres). 

O público que enchia a Sala São Paulo reconheceu a excelência do programa com palmas calorosas. A importância do evento, aliás, aumenta quando tais obras são interpretadas por um conjunto vocal de tamanha excelência como é o Coro da Osesp. 

Leia também
Notícias Theatro Municipal promove encontro para discutir ‘cantar brasileiro’
Notícias Disco da Osesp com obras de Almeida Prado vence Prêmio da Música Brasileira
Notícias Osesp abre nova edição do Festival de Campos do Jordão, que terá 60 concertos
Crítica É preciso ouvir este disco para entender Lorenzo Fernandez, por João Marcos Coelho
Crítica Carlos Kater publica ‘Encontros com Villa-Lobos’, por Camila Fresca
Compositoras em foco Compositoras em foco: Michelle Agnes e a ‘Sinfonia botânica’

Coro da Osesp durante apresentação de obra de Valéria Bonafé [Divulgação/Osesp]
Coro da Osesp durante apresentação de obra de Valéria Bonafé [Divulgação/Laura Manfredini]

 

Curtir

Comentários

Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.

É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.