É preciso ouvir este disco para entender Lorenzo Fernandez

por João Marcos Coelho 24/06/2024

Não nos damos conta da importância do projeto A Música do Brasil, do Ministério das Relações Exteriores em parceria com o selo Naxos, que vem registrando pela primeira vez o rico itinerário histórico das formas sinfônicas brasileiras. O acervo parcialmente disponível já modificou nossa compreensão do gênero no país. Outro mérito paralelo é disponibilizar, em condições técnicas e artísticas de primeira qualidade, a produção brasileira.

Rodolfo Coelho de Souza me contou há bastante tempo que, quando estudava nos Estados Unidos, alguém num concerto com obras de Villa-Lobos disse que não conhecia aquele “compositor norte-americano”. Bem, se até o Villa é confundido, imaginem nomes mais caseiros, como Lorenzo Fernandez (1897-1948). Seu nome é mundialmente conhecido por apenas um movimento de uma suíte. Estou falando do Batuque, da suíte Reisado do Pastoreio, que foi regido por nomes ilustres da batuta internacional, como Toscanini, Koussevitzky, Bernstein e Carlos Chávez. 

Até especialistas em música de concerto da América Latina apenas listam o Batuque e as duas sinfonias de Fernandez. À musicóloga Carol Hess, por exemplo, no quinto volume da série The Symphonic Repertoire, dedicado às Américas, só concederam pouco menos de 200 páginas para cobrir o chamado sul das Américas,  enquanto a música nos EUA ocupa mais de 700 páginas. Ela só lista as duas sinfonias de Lorenzo Fernandez. Portanto, vivemos um período de descobertas, Se aqui já causa espanto a qualidade da música de compositores como Lorenzo Fernandez, imaginem no resto do planeta. A academia, como sempre, virá a reboque.

Vamos à gravação, excepcional, da Filarmônica de Minas Gerais, que recentemente sofreu um ataque absolutamente maluco que pretendia asfixiá-la – ataque do qual ela, já amplamente legitimada junto não só a Minas Gerais, mas a todo o país, safou-se graças a ações corajosas da mídia e também do maestro Fabio Mechetti, num texto memorável.

Como para entender melhor sua música é preciso mergulhar no contexto modernista no qual ele atuou, reproduzo a seguir parte de um artigo de Mário de Andrade de 1934 que define bem o compositor: “Lorenzo Fernandez é, no momento, uma das mais altas figuras da música brasileira. No seu grupo de geração, já caracteristicamente especificado da musicalidade artística nacional, grupo que contém ainda Villa-Lobos e Luciano Gallet, ele representa, mais que os outros, o lado conhecimento técnico, o lado por assim dizer ‘acadêmico’, desde que se tire desta palavra a significação odiosa.(...) A sua criação não tem aquelas invenções arroubadas com que Villa-Lobos dispensa a técnica pra criar uma possível 'técnica' que só a boniteza da obra parece justificar. (...) Muito embora usando as conquistas da técnica musical do nosso tempo, se compraz em adaptá-las com segurança, onde elas sejam duma lógica imprescindível, como que indispensáveis”, escreve ele em Música e jornalismo.

Vasco Mariz, em sua História da música brasileira, diz que ele foi “um compositor bem comportado” pelo equilíbrio entre sua formação musical tradicional e  a novidade do modernismo brasileiro. De fato, em dois artigos, de 1930 e 1931, Fernandez elaborou, e poucos se dão conta disso hoje, as bases do pensamento educacional nacionalista na música. Sérgio Nepomuceno afirma que “ele foi o mentor teórico das ideias, enquanto Villa-Lobos, graças ao prestígio que auferia junto a Vargas, [foi] seu autor pragmático, ensinava a cantar e reger para imensas concentrações estudantis”. 

Villa não era chegado em teorias, Lorenzo foi o parceiro ideal em seu projeto educacional bancado por Getúlio. As ideias básicas foram formuladas por ele: formação de corais infantis, ensino obrigatório de teoria e solfejo. Em suma: “nacionalização e desenvolvimento intensivo e extensivo da Arte, que é a cúpula cultural de todos os povos”. Em 1932, ajudou Villa na implantação da SEMA – Superintendência de Educação Musical Artística do Distrito Federal.

CD Lorenzo Fernandez [Divulgação]

Agora podemos ouvir as duas sinfonias que ele compôs pouco antes de morrer, entre 1946 e 47. São dois os espantos, para quem nunca as escutou. Primeiro, ele tinha um metiê da escrita orquestral bastante refinado, amadurecido, segundo as melhores regras clássicas. Segundo, jamais ultrapassou os limites da América do Sul e foi dos raros compositores brasileiros que jamais estudaram fora do país, o que o tornou ainda mais desconhecido no outrora chamado Primeiro Mundo. Ou seja, sua música é correta, acadêmica, mas no bom sentido, como acentua Mário. 

Dois exemplos. O último movimento da Sinfonia nº 1, um “Allegro energico”, na feliz expressão de Tacuchian, “dá a impressão de que o compositor fez questão de anunciar uma nova era [pós-Estado Novo/pós Segunda Guerra] para o Brasil e para o mundo”.

A Sinfonia nº 2 baseia-se no poema de Bilac contando as façanhas de Fernão Dias Paes Leme, bandeirante caçador de esmeraldas (e de indígenas) do século XVII. Experimente escutar algumas vezes o encorpado primeiro movimento, um Allegro moderato e pesante (Energico), em que ele mantém o interesse por meio de uma escrita refinada, introduzindo-nos no universo ao mesmo tempo misterioso e viril de Paes Leme. O compositor Ricardo Tacuchián, no preciso texto do encarte do álbum, escreve que as duas sinfonias, ambas compostas após o final da Segunda Guerra Mundial, já respiram ares mais universalistas, menos nacionalistas.

Aliás, e apesar de ser um dos pilares do modernismo nacionalista capitaneado pelo vulcânico Villa no Estado Novo, ele manteve-se firme em seus propósitos criativos, como neste balanço que fez em 1942 sobre a Semana de 22, vinte anos depois: “Dizer que somos modernistas é bobagem. O que somos é atuais. Já se viu que o modernismo não existe. Isto não quer dizer que se possa fazer todos os cabotinismo e todas as maluquices em nome da Arte atual. Os que as fazem não são artistas, são palhaços aproveitadores. É preciso muita seriedade. Não se deve brincar com a arte. Esses tolos que fazem umas coisas sem técnica, nem método, nem forma, e dizem que é modernismo, são tudo o que quiserem, menos  artistas. A primeira necessidade do artista atual é ser um perfeito mestre da técnica, conhecer tudo o que se fez. Só então poderá verdadeiramente dar um passo para a frente. O que se chama por aí de modernismo foi o movimento de democratização da arte. Nós demos o brado de liberdade. Acabar com todos, os ídolos, as tiranias, no campo da arte. A arte moderna, como se entende vulgarmente, é isso. Liberdade para o artista!”.

[O disco com as sinfonias de Lorenzo Fernandez está disponível na Loja CLÁSSICOS; clique aqui]

Leia também
Notícias Disco da Osesp com obras de Almeida Prado vence Prêmio da Música Brasileira
Especial A música do Brasil
Compositoras em foco Michelle Agnes e a ‘Sinfonia botânica’
Crítica Carlos Kater publica ‘Encontros com Villa-Lobos’, por Camila Fresca
Notícias Prepare-se: os destaques da agenda da semana
Notícias Osesp abre nova edição do Festival de Campos do Jordão, que terá 60 concertos
Notícias Prelúdio da TV Cultura abre inscrições para nova temporada

O compositor Lorenzo Fernandez [Divulgação/Projeto Lorenzo Fernandez]
O compositor Lorenzo Fernandez [Divulgação/Projeto Lorenzo Fernandez]

 

Curtir

Comentários

Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.

É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.