Caminho do sonho

por Jorge Coli 30/05/2021

No século XIX, libretistas e compositores empenhavam-se em criar mundos imaginários, e os cenaristas deviam também corresponder a essas viagens quiméricas

“Castil-Blaze, denunciando a música ‘manca, incompleta e frequentemente desagradável’ dos compositores de seu tempo, considerava que era obrigado a protegê-la ‘por meio dos prestígios da decoração e da montagem’, na qual o triunfo dos cantores se apagava mesmo diante dos animais, corcéis fogosos, palafréns, juntas de animais nas carruagens: ‘esses quadrúpedes inteligentes meditam, preparam o triunfo do professor de solfejo e do professor de mímica teatral’.” 

Este trecho vem da introdução que Daniel Rabreau escreveu para o livro de Catherine Join-Dieterle, Os cenários de cena da ópera de Paris na época romântica.

A passagem lembra como, no século XIX, a montagem adquirira uma importância excepcional. Os grandes teatros, como a Ópera de Paris, possuíam suas estrebarias, com animais treinados: Gaston Leroux, em seu romance O fantasma da ópera, deu lugar de destaque ao cavalo branco de Le prophète, ópera de Meyerbeer que fazia então extraordinário sucesso.

Os compositores sabiam disso, e cuidavam com atenção das representações, incluindo novidades técnicas para efeitos espetaculares: no balé das freiras mortas, em Robert le Diable, Meyerbeer tentou incluir patins de rodas, que haviam acabado de serem inventados, mas o barulho que eles fizeram sobre as pranchas era tanto que foi preciso desistir da ideia. Verdi deixou esquemas de montagem de algumas óperas e Wagner pensava em todos os detalhes cênicos.

O texto de Rabreau assinala um ponto importante: as montagens podem salvar ou matar espetáculos. Sabe-se que o escândalo da estreia da Sagração da Primavera veio mais da coreografia de Nijinsky do que da música de Stravinsky, e vemos revivals fracassados porque algum diretor de cena decidiu encontrar soluções que não apoiaram ou compreenderam a partitura.

Esse trecho citado revela também o caráter onírico que o espetáculo teatral tomava. Completou-se com os esplêndidos teatros que, na medida em que o século avançava, ficavam mais suntuosos, mais esplêndidos, ricos de ouros, espelhos e veludos, formando escrínio e moldura para as obras. Entrar numa dessas salas é uma experiência sensorial embriagante, tão diferente das escolhas arquiteturais correntes para os teatros de agora. 

Tudo isso condicionava o espectador, dispunha-o para as belezas que o compositor, libretista, cenarista, diretores de cena lhes ofereciam

A ópera, como espetáculo total capaz de subjugar o espectador teve um grande herdeiro, o cinema. E os maravilhosos teatros líricos tiveram também sua descendência nos belíssimos “palaces” cinematográficos, também concebidos como casas de sonhos, tão diversos dos multiplex de shopping que conhecemos. Era o mesmo princípio de preparar o espectador para a extraordinária aventura que envolvia sua sensibilidade e sua inteligência, que ele ia desfrutar por algumas horas. 

Tudo isso condicionava o espectador, dispunha-o para as belezas que o compositor, libretista, cenarista, diretores de cena lhes ofereciam. Um cronista anunciava: “É admirável; é assustador o que veremos em Robert le Diable. Coisas graciosas, terríveis, coisas verdadeiras, fantásticas, uma bacanal de religiosas em roupinhas transparentes, enfim, coisas que farão vender camarotes por seis meses”.

Eis o que se espera das óperas: paixões tenebrosas, balés sensuais, dramas intensos. Tudo isso nos leva para o caminho do sonho. Fala-se muito na inverossimilhança dos libretos – esquecendo-se que elas possuem um sentido muito mais profundo do que se pensa, como reveladoras do absurdo que significa estar no mundo, sentimento motor instalado no âmago das inquietações românticas. Esquece-se da natureza onírica da ópera, que nos embriaga pelos sons, como um ópio que induz sonhos maravilhosos.

Todas as formas de exotismos – exotismos no tempo: idade média, renascimento, antiguidade, elegância rococó, civilizações remotas, egípcia, babilônica; exotismo no espaço: Espanha, Escócia, Índia, Bali, todos os orientes e ocidentes – serviam para levar o público para longe da banalidade quotidiana. Libretistas e compositores empenhavam-se em criar esses mundos imaginários, e os cenaristas deviam também corresponder a essas viagens quiméricas.

O público desses teatros sempre foi socialmente muito diversificado. A assim chamada estrutura “à italiana”, com balcões, permitia uma gradação dos preços e, portanto, uma variação social considerável. “Torrinhas”, “galinheiro” ou “paraíso” foram nomes dados aos lugares que se situavam mais no alto. Mesmo de longe, era possível ver e, bela compensação, via de regra essas fileiras lá nas alturas eram beneficiadas pela acústica. 

O paraíso era, de fato, um paraíso.

Leia também
Especial Martha Argerich: oito vídeos para celebrar os 80 anos da pianista
Notícia Prepare-se: doze concertos para ver ao vivo ou na internet
Notícias Ópera na pandemia é destaque da edição de junho da Revista CONCERTO
Notícias Cursos CLÁSSICOS On-line lançam programação de junho
Colunistas Cantar brasileiro para celebrar 85 anos do Coral Paulistano, por Camila Fresca

Cenário da estreia da ópera 'Robert le Diable', de Meyerbeer [Reprodução]
Cenário da estreia da ópera 'Robert le Diable', de Meyerbeer [Reprodução]

 

Curtir

Comentários

Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.

É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.