Maestro e compositor finlandês, que morreu no início de outubro, jamais obedeceu a qualquer regra e ninguém lhe colocou cabresto desde sua formação em Helsinque e, depois, na Juilliard School em Nova York
Confesso que sempre passei meio batido pela figura de Leif Segerstam, o maestro e compositor finlandês que morreu no último dia 9 de outubro, aos 80 anos. A gravadora Ondine lançou no dia em que completou os 80 anos, 2 de março passado, um álbum triplo com uma boa amostragem de sua obra intitulado “Leif Segerstam 80 years”. A notícia de sua morte me fez escutar com atenção este álbum triplo, em que ele rege Sibelius (uma de suas especialidades) e outros compositores finlandeses, além de obras próprias.
Sua figura é uma mistura da aparência do Brahms em seus anos finais, de longas barbas brancas (a do finlandês é muito maior) com Ignaz Schuppanzigh, o gorducho spalla e líder do quarteto de cordas Razumovsky, mecenas violinista de Beethoven, que estreou em Viena vários quartetos do compositor. Segerstam jamais obedeceu a qualquer outra regra e ninguém lhe colocou cabresto desde sua formação em Helsinque, e depois na Juilliard School em Nova York.
A pedra de toque final de seu perfil fora da caixinha foram suas 371 sinfonias. Sim, ele compôs 371 sinfonias. Todas em movimento único, girando em torno dos 20 minutos cada. Elas se espelham na Sinfonia nº 7, a última composta por Sibelius, em 1923, cuja execução varia dos 20 aos 22 minutos, em movimento único, levando muitos musicólogos a se debruçarem sobre suas origens. De fato, Sibelius começou a trabalhar na sétima pensando em uma sinfonia em vários movimentos, mas acabou concentrando-os num só movimento orgânico.
Esta sinfonia transformou-se no farol básico, fonte suprema das 371 sinfonias de Segerstam. Porém, com diferenças essenciais. Ele conserva o movimento único, mas incita os músicos a improvisarem de modo reativo. “Ele se convenceu de que a Sinfonia nº 7 de Sibelius era um convite para as gerações futuras: um desafio para estender o conceito de fluidez musical e ‘improvisação projetada’ em um contexto sinfônico”, escreve o jornalista e crítico inglês Andrew Mellor, que o entrevistou várias vezes, no seu livro The Northern Silence. Journeys in Nordic Music and Culture (Yale University Press, 2022). Um desafio, afirma Leif Segerstam, que os finlandeses estão em melhores condições de enfrentar em relação a músicos de outros países.
Na introdução escrita na partitura da sua Sinfonia nº 288, que leva o subtítulo “Deixando o fluxo rolar...”, Segerstam adverte que “o fluxo deve sempre continuar em nossa própria trilha sonora". Esta é a razão pela qual suas sinfonias prescindem da figura do maestro. Há um vídeo de uma performance desta sinfonia em 16 de outubro de 2016 no YouTube com a Filarmônica de Turku em que o spalla, do seu lugar e sem se levantar, dá o sinal para o primeiro ataque; Segerstam pilota o piano.
Mellor diz que ele é “um dos grandes personagens do mundo da música nórdica, um maestro elogiado da velha escola que parece ter saído das páginas do Kalevala ou de uma cena dos Muppets”. A referência à regência da velha escola significa, por exemplo, que seus tempos na gravação das quatro sinfonias de Brahms são mais lentos do que os modernamente adotados. Experimente ouvir uma delas, a terceira, no YouTube com Segerstam regendo a Filarmônica de Turku.
Sua música, no entanto, é complexa e exige bastante dos intérpretes. Afinal, disse mais de uma vez, “o tempo não existe, é apenas uma forma de comparar continuidades". E como ele “brinca com o tempo” nas suas sinfonias. Os músicos tocam durante determinado tempo indicado em segundos ou minutos segundo células prescritas. Mellor diz que “o material é estritamente organizado, apesar de sua relativa liberdade” e que os instrumentos funcionam como peças de xadrez, só podem mover-se em direções definidas ou segundo certos números indicados na partitura. A orquestra se reúne nos lugares pré-determinados de fusão. As pausas são indicadas, mas não contêm indicações de tempo precisas. Portanto, os momentos de fusão não são fixos, dependem de cada execução. "Eu não sigo um esquema; eu escuto tudo. Qual é a próxima nota? Para baixo ou para cima? Um passo ou dois passos? A situação dá a resposta. Não sou um compositor, sou um selecionador de tons. Não se trata de construir, mas de surfar.”
Um último depoimento do compositor, que acabou de nos deixar, a respeito das razões que têm projetado os finlandeses no planeta de forma consistente no último meio século, tanto na composição como na regência: “Em nossa música, sempre estamos decidindo ir para este ou aquele caminho, para cima ou para baixo, ou aguardamos até que estejamos prontos para tomar uma decisão. Isso é natural para um finlandês, porque estamos entre Oriente e Ocidente e nos inspiramos em ambos. Esta é a vida para um finlandês. O músico finlandês segue o instinto para se expressar retoricamente”.
Encerro lembrando seu mantra final, explicado por Andrew Mellor em seu livro: “Um senso de audição aguçado é exigido de todos os envolvidos na música de Segerstam, seja no palco ou na plateia. Você não pode ler a partitura em sua cabeça e certamente não pode consultar nenhuma nota racional sobre o programa. As sinfonias de Segerstam acontecem ‘no momento’, nunca estruturalmente as mesmas duas vezes”.
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