Para as políticas ambientais de salvação do planeta, a cultura e as ciências humanas são tão determinantes quanto as soluções tecnológicas
O compositor Mauricio Kagel é um dos grandes criadores da segunda metade do século XX. Nascido em 1931 em Buenos Aires, Kagel estudou música, filosofia e literatura e, ainda na Argentina, trabalhou com música e cinema. Em 1957 mudou-se para a Alemanha, onde tornou-se figura destacada dos Festivais de Música Nova de Darmstadt. Radicou-se em Colônia e ali desenvolveu trabalhos acústicos e visuais criando um amplo catálogo com obras orquestrais, música de câmara, obras radiofônicas e peças para teatro e cinema. Kagel, cujo interesse por outras vertentes artísticas o afastou do percurso de seus colegas da música nova, é tido como um dos principais representantes do “teatro musical”. É um artista muito interessante e suas obras, sempre diretas e provocativas, também apresentam um componente velado de humor.
Kagel morreu em 2008, mas bem antes disso já tinha percebido a dimensão da tragédia que a civilização industrial está construindo. (Talvez isso se devesse ao fato de viver na Alemanha, país em que os movimentos ambientalistas foram e são especialmente fortes.)
Assim, em 1980, Kagel criou um espetáculo de teatro musical (ilusão cênica em um ato) chamado Die Erschöpfung der Welt, a exaustão do mundo. Em alemão, é um trocadilho com “Schöpfung der Welt”, a criação do mundo. Nele, o compositor inverte a imagem do Deus cristão, caridoso e bom, para um Deus raivoso, rancoroso e cruel. Passagens bíblicas de tolerância e amor são transformadas em agressão e ódio. A natureza é feita poluída, carbonizada, destruída. Deus, tonitruante e raivoso, é um sádico que maltrata os indefesos humanos, os tortura e os leva ao desespero.
"No fim, Deus exauriu o céu e a terra. O mundo estava deserto e estéril, a fumaça pairava sobre o dilúvio primordial e o espírito de Deus escoava no esgoto. E Deus disse: ‘Que se faça luz.’ Mas não havia luz. E Deus viu que a escuridão era boa.”
A obra termina quando os humanos são finalmente jogados em um enorme e divino moedor de carne...
Em maio de 1985 assisti à estreia concertante da obra de Kagel na Alemanha, com a Filarmônica de Berlim. Saí chocado e guardo essa memória até os dias de hoje. Deus era uma voz grave, apavorante, amplificada por alto-falantes. Se a Erschöpfung der Welt é uma provocação ácida aos cristãos e seus valores, ela também é uma crítica aguda ao mundo em que vivemos.
Lembrei-me de Kagel e da exaustão do mundo nesses dias em que acontece, em Glasgow, a Conferência das Nações Unidas sobre as mudanças climáticas, a COP26. Quase duzentos países debatem estratégias para a salvação do planeta dos efeitos do aquecimento global.
As previsões são estarrecedoras! E, infelizmente, não são fake news. São longos e complexos estudos apoiados em evidências científicas, que apontam que, se nada for feito, em um futuro bem próximo a vida em nosso planeta será um pequeno inferno. Não vou repetir aqui as previsões catastróficas que climatologistas fazem para daqui a 3 ou 4 décadas, ou seja, ainda no horizonte de nossos filhos e netos. E cientistas advertem: estamos próximos de um ponto em que não haverá mais retorno.
Há negacionistas, como sempre, que não acreditam ou não enxergam a magnitude do problema. São uma minoria, ainda que barulhenta. Mas há também outro grupo de pessoas, positivista – tanto no sentido do positivismo filosófico quanto de uma postura otimista em relação ao futuro –, que acredita que, quando a hora chegar, o homem terá a tecnologia para capturar o carbono da atmosfera e restaurar o equilíbrio climático. É uma linda visão tecnocrática...
Não restam dúvidas de que a ciência é uma de nossas mais poderosas ferramentas para vencer os desafios do mundo contemporâneo – vide como as vacinas, consequência direta do conhecimento científico, estão debelando a covid. O positivismo, porém, não pode desprezar um vetor forte e altamente destrutivo de nossa civilização, que é o da exploração industrial não sustentada, que queima combustíveis fósseis e compromete recursos naturais finitos. Se seguirmos trilhando esse caminho baseado no consumo desenfreado, em algum momento do futuro – e parece que este momento é logo mais – a conta será cobrada.
Tenho cá para mim, que a melhor ferramenta para nos livrar desse impasse é a educação e a cultura. Educação como transferência de conhecimento, elaboração de processos criativos, prospecção de identidade e construção de cidadania. E a cultura como irmã gêmea da educação. A cultura é uma antena que capta, reflete e inventa a nossa sociedade e comportamentos. É por meio dela que viajamos pelos espaços dos sentidos e das emoções. É a cultura que nos faz humanos.
E aqui volto a Kagel, pois a cultura pode ser mais um freio em nosso percurso civilizatório suicida. Pego Kagel como exemplo, mas claro que não é só ele. É toda a nossa história humanista, a música, as artes visuais e a escultura, a filosofia, a literatura e a poesia, a dança, o teatro e tudo aquilo que movimenta esse imenso caldo de cultura que nos cerca e que nos conecta como humanos. E sem fronteiras. Falei da nossa cultura ocidental, mas em sua transcendência ela se encontra com as tradições orientais milenares, com os rituais indígenas e com tudo que é fruto de nossa criatividade, fantasia e imaginação.
Os resultados da COP26 nos mostrarão, também, se no mundo em que vivemos as ciências humanas, a educação e a cultura estão tendo a consideração que merecem. Tomara que sim...
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