Foi a recomendação que a compositora, que morreu hoje aos 93 anos, recebeu de Chostakóvitch nos anos 1960, quando iniciava uma trajetória que faria dela uma das vozes mais relevantes da composição mundial
No momento em que se resgatam as compositoras mulheres, torna-se ainda mais relevante ouvir uma voz tão poderosa que nem a ditadura nem a misoginia conseguiram calar. Recém falecida em solo germânico, a russa Sofia Gubaidúlina (1931-2025) foi um dos nomes mais importantes da composição na segunda metade do século XX – e manteve a relevância no terceiro milênio.
Para não ir muito longe: em 2023, quando ela contava com respeitáveis 91 anos de idade, foi indicada para o Grammy por Der Zorn Gottes (A Ira de Deus), tributo aos 250 anos de Beethoven, estreado em 2020 no Musikverein, na capital austríaca, com a Orquestra Sinfônica da Rádio de Viena, sob direção de Oksana Lyniv, e gravado para a Deutsche Grammophon pela Orquestra Gewandhaus, de Leipzig, regida por Andris Nelsons.
Homenagear Beethoven falando de Deus é um gesto bem característico de uma compositora que aliava fervor místico e rigor matemático. Gubaidúlina nasceu em Tchístopol, na atual República do Tataristão, em família mista: tártara (seu avô era um imame, sacerdote muçulmano) por parte de pai, russa (ortodoxa) do lado materno. A URSS era oficialmente um país ateu, e sua família, laica. Contudo, influenciada sobretudo pelo exemplo da pianista Maria Iúdina (que jamais fez concessões em sua religiosidade, mesmo no auge do stalinismo), Gubaidúlina acabou abraçando o cristianismo ortodoxo, que constituiria sua base existencial, filosófica e estética.
Ela estudou no conservatório da capital tártara, Kazan (que, em 2011, por ocasião de seu 80º aniversário, concedeu-lhe o título de cidadã honorária) e, posteriormente, em Moscou, onde foi aluna de piano do grande Iákov Zak, e trabalhou em composição com Iúri Chapórin, Nikolai Peikó e Vissarion Chebalin. Ficaram célebres as palavras de incentivo que Chostakóvitch lhe disse quando ela concluiu o doutorado, em 1963: “Desejo que a senhora percorra seu caminho ‘incorreto’.”
Afinal, Gubaidúlina pertencia à brilhante geração de compositores soviéticos do pós-guerra que saía dos estreitos limites do “realismo socialista”, como Alfred Schnittke (1934-1998), Edison Deníssov (1929-1996), o ucraniano Valentin Silvéstrov (n.1937) e o estoniano Arvo Pärt (n.1935). Ela chegou a atuar no Estúdio Experimental de Música Eletrônica de Moscou, e a participar de um grupo de instrumentação em instrumentos folclóricos chamados Astreia. Não por acaso, compôs várias peças para o baian, acordeão popular russo, cuja sonoridade é explorada de forma insólita – como, por exemplo, Fachwerk, de 2009.
Como vários compositores que percorriam o caminho “incorreto” na URSS, Gubaidúlina encontrou nas telas o espaço que lhe faltava nas salas de concerto. Suas trilhas sonoras são 25, e incluem pelo menos uma bastante cultuada na Rússia: a do desenho animado Mogli, de 1971 (veja aqui), inspirado no livro de Rudyard Kipling. Em 1979, ao lado de seis colegas, a “incorreção” de seu caminho foi denunciada no VI Congresso da União dos Compositores da URSS pelo presidente da entidade, Tíkhon Khrénnikov, numa versão requentada das campanhas de Jdánov-Stálin em 1948 contra os “incorretos” Prokófiev, Chostakóvitch e Khatchaturian.
No momento em que o espaço em casa parecia claustrofobicamente encolhido, abriram-se para Gubaidúlina as portas para o mundo. O responsável foi o violinista letão Gidon Kremer, que em 1980 deixou a URSS para se radicar na Alemanha. Entusiasta dos compositores “incorretos”, ele já havia difundido o Concerto Grosso nº 1, de Schnittke, no Ocidente e, encomendou a peça que seria o cartão de visitas de Gubaidúlina fora da Cortina de Ferro – o Offertorium.
Em um lance digno de filme de espionagem, a compositora contrabandeou a partitura para o exterior através do editor Jürgen Köchel, e Kremer estreou-a em Viena, em 1981. O planeta descobria Gubaidúlina e, encantado, o cineasta português Manuel de Oliveira incluiu Offertorium em O convento, filme de 1995 estrelado por Catherine Deneuve e John Malkovich (veja aqui).
Começaram a chover prêmios, encomendas, reconhecimento. A mistura de Cristo e Fibonacci, tradicionalismo e vanguarda, Oriente e Ocidente produzia uma linguagem dramática, densa, e de texturas inesperadas. Enquanto isso, seu país se dissolvia. Em 1991, Gubaidúlina escapou do caos da Rússia de Boris Iéltsin com uma bolsa em Worspwede, na Alemanha. No ano seguinte, fez do país sua morada definitiva, radicando-se em Appen (junto a Hamburgo), onde encerrou seus dias. Contudo, declarou em entrevista ao The Guardian, em 2013, que nunca se considerou uma exilada – tanto que voltou à Rússia diversas vezes.
Figurinha carimbada nas melhores orquestras do mundo, como a Filarmônica de Berlim, Gubaidúlina veio ao Brasil em 2009, a convite da Osesp, que executou o concerto para duas violas Two Paths, de 1999 (veja aqui), e a sinfonia em doze movimentos Stimmen... Verstummen..., de 1986 (veja aqui).
Mais recentemente, em seu álbum Sofia Gubaidúlina/ÍgorStravinsky/Hermeto Pascoal, lançado pela gravadora Rocinante, e indicado ao Grammy Latino, a pianista Érika Ribeiro homenageou, em 2021, os 90 anos da compositora, gravando seus Brinquedos musicais – testemunho da versatilidade e originalidade de uma criadora que não precisou fazer concessões de nenhuma espécie para conhecer o sucesso.

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Comentários
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Que beleza. Está eternizada.
Que beleza.
Está eternizada.