Um outro mundo criado a partir do piano

Quando Cristian Budu faturou o primeiro prêmio no Concurso Internacional Clara Haskil, na Suíça, em 2013, quebrando um jejum de duas décadas do piano brasileiro em competições deste nível (o último tinha sido Ricardo Castro, em Leeds, em 1993), tudo anunciava o início de uma fulgurante carreira internacional.

E o sucesso europeu veio – e continua. Cristian tocou com orquestras como a Sinfônica de Lucerna, Suisse Romande, Rádio de Stuttgart, e em duo com parceiros do renome do violinista Renaud Capuçon e do violoncelista Antonio Meneses. Seu álbum solo, para o selo suíço Claves, foi amplamente aclamado pela crítica internacional, com a proeza de entrar na lista de melhores gravações tanto de Chopin, quanto de Beethoven, da revista Gramophone. Fez recital solo no festival de Verbier, na Suíça, e em agosto tem também um recital, sozinho, no festival de La Roque-d’Anthéron, na França (onde também faz uma apresentação em homenagem a Nelson Freire com outros pianistas brasileiros).

Só que, em vez de residir em Berlim ou outro grande centro da Europa, este paulista de sangue romeno preferiu se radicar em Belo Horizonte. E, em lugar de simplesmente perseguir o objetivo individual de uma carreira de sucesso, compartilhar coletivamente seu saber acumulado e adquirido. Não no Velho Continente, mas sim em seu Brasil natal.

Assim, nos arredores de Ouro Preto, no âmbito da Escola Saramenha de Artes e Ofícios, ele tomou a frente de uma Escola de Piano, cuja atividade inaugural é um festival de piano iniciado no dia 7, e que vai até dia 17.

O estabelecimento foi criado por Paulo Rogério Ayres Lage em um antigo ateliê de cerâmica e azulejaria que resgata a técnica saramenha, que utiliza barro escuro e obtém aspecto vidrado por meio de um verniz especial feito com pigmentos metálicos.

Localizada em uma área paradisíaca, entre campos, matas e declives, a Saramenha ocupa uma área verde particular de mais de cinco hectares. A área construída é de mais de 1.200 metros quadrados, incluindo galpões, oficinas de barro, madeira e metal, salão de eventos, três salas de aula fechadas e uma arena ao ar livre, com palco coberto, com capacidade para 450 espectadores – além de uma pousada.

Nove jovens bolsistas (cinco homens e quatro mulheres) foram selecionados para participarem do festival, e ficam convivendo e tendo aulas por todo o período do evento. Destes, um será selecionado para se apresentar, em setembro, do Festival Artes Vertentes, em Tiradentes. 

Cristian Budu e Gustavo Carvalho durante recital na abertura do festival [Revista CONCERTO/Irineu Franco Perpetuo]
Cristian Budu e Gustavo Carvalho durante recital na abertura do festival [Revista CONCERTO/Irineu Franco Perpetuo]

Luiz Gustavo Carvalho, diretor artístico do evento parceiro, foi a Ouro Preto para dividir com Budu as aulas do festival no primeiro final de semana, nos dias 9 e 10 de julho. Em ambas essas datas, eles fizeram ainda apresentações a quatro mãos – no sábado à noite e domingo pela manhã.

Budu e Carvalho têm diferentes histórias, formações e abordagens do teclado. Porém, quando tocam juntos – seja no mesmo instrumento, seja a dois pianos –, soam como gêmeos univitelinos. Eles timbram instantaneamente sua sonoridade, entendem-se no jogo de pedais, sincronizam os rubatos, fraseiam em comunhão.

Talvez essa afinidade toda se deva ao espírito de Nelson Freire que paira sobre ambos. Afinal, Freire abençoou a carreira de Carvalho desde cedo, quando este era ainda criança, e fez questão de realizar o recital de abertura da primeira edição do Festival Artes Vertentes. Quanto a Budu, foi devido a um conselho de Freire que ele se inscreveu para disputar o Clara Haskil – e, em sua última entrevista, o Reverendo do piano brasileiro ungiu Cristian como seu sucessor.

O recital começou com Bilder aus Osten, seis peças para piano a quatro mãos que Schumann escreveu em 1848, inspirado na tradução alemã de Friedrich Rückert do poeta árabe do século XI Al-Hariri de Basra. Imageticamente, portanto, seriam quadros do Oriente – que por várias vezes, contudo, soam como evocações do Leste europeu. Dotados de grande afinidade para com o universo schumanniano, Budu e Carvalho souberam conferir identidade individual a cada um dos quadros desenhados pela tormentosa mentalidade de Schumann.

Depois veio o delicioso Divertissement à l’hongroise, D. 818 – uma alentada (meia hora de duração) e menos conhecida do que merece peça de Schubert. Trata-se de um coquetel reunindo as características mais encantadoras do compositor vienense: o melodismo cantável, o contagiante caráter de dança, e as repetições que funcionam como mantras e induzem ao transe, com um terceiro movimento mesmerizante. Depois de uma execução realmente cativante da partitura schubertiana, o duo resolveu manter o clima magiar, com leituras lúdicas e divertidas de quatro das Danças Húngaras, de Brahms.

Além dos concertos, foi possível ainda acompanhar algumas das aulas dos jovens pianistas. E aí vale destaque para Carvalho, trabalhando Jeux d’eau, de Ravel com um bolsista. Se a Saramenha é uma Escola de Artes e Ofícios que aborda diversas áreas do fazer artístico, a multidisciplinaridade está no DNA do Festival Artes Vertentes desde seu nascimento.

E essa multiplicidade inesgotável de interesses concentra-se na mente de Carvalho, que, após um breve período com Lasar Berman, foi discípulo de Oleg Maisenberg em Viena e Elisso Virsaladze em Moscou. Sim, os conselhos técnicos estão lá. Mas ele pode evocar a paleta orquestral de Ravel em Daphnis et Chloé ou as gravações do regente Ernest Ansermet para sugerir coloridos ao aluno. Ou o mundo de Richard Strauss em O Cavaleiro da Rosa. Pouco depois, já estamos nos filmes do russo Andrei Tarkóvski para falar de tempo dilatado, ou nos quadros de Van Gogh como exemplo de pontilhismo. Com outros alunos, a sugestão pode ser o chiaroscuro dos quadros de Caravaggio para uma peça de Chopin, ou a literatura do chileno Roberto Bolaño para uma sonata de Prokófiev. Diante de tamanha generosidade e entrega, o entusiasmo dos bolsistas não podia ser maior.  

[O jornalista Irineu Franco Perpetuo viajou a Ouro Preto a convite do festival.]

Leia também
Notícias 
Ospa faz grande estreia no Teatro Colón de Buenos Aires
Notícias Piero Schlochauer vence concurso de ópera do Fórum-ODM
Notícias Theatro Municipal do Rio de Janeiro celebra 113 anos com portas abertas e ‘Don Giovanni’
Notícias Festival de Campos do Jordão: a programação da segunda semana
Notícias Arnaldo Cohen faz programa duplo com Filarmônica de Minas Gerais

O pianista Luiz Gustavo Carvalho [Divulgação/Irineu Franco Perpetuo]
O pianista Luiz Gustavo Carvalho [Divulgação/Irineu Franco Perpetuo]

 

Curtir

Comentários

Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.

É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.