Instrução Normativa recém-lançada não alterou as exigências draconianas impostas pelo governo federal para a utilização da lei de incentivo à cultura; Festival de Inverno de Campos do Jordão não consegue liberar os recursos de patrocinadores privados
Na coletiva de imprensa realizada ontem pela Secretaria de Cultura e Economia Criativa e pela Fundação Osesp para a apresentação da nova edição do Festival de Inverno de Campos do Jordão (leia aqui), o secretário Sérgio Sá Leitão e o diretor executivo da Osesp, Marcelo Lopes, afirmaram que não foi possível liberar os patrocínios captados da iniciativa privada por meio da Lei Rouanet. Assim, o custo total do festival, R$ 6 milhões, será integralmente pago pelo orçamento do governo do estado.
“A questão pontual, deste ano, sobre a Lei Rouanet, diz respeito a problemas de duas ordens”, explicou Lopes. “A primeira é uma questão conceitual: existe um decreto do ano passado que limita bastante a possibilidade de operação de programas como o da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. O segundo problema é de ordem burocrática mesmo: temos encontrado muitos entraves na realização de gestões junto à Secretaria Especial de Cultura com o sistema Salic. [...] Isso nos impede, até esse momento, de lançar mão dos recursos da Lei Rouanet que estão lá depositados.” E o secretário Sá Leitão emendou: “Lamentavelmente, seja por conta de uma Instrução Normativa e de um decreto extremamente restritivos lançados pelo governo federal, seja porque o plano anual da Fundação Osesp para 2022 não foi aprovado, seja porque não houve autorização para movimentação dos recursos que estão disponíveis, que foram captados junto aos patrocinadores no final de 2021 – por esses três fatores, combinados, não está sendo possível utilizar os recursos da lei federal de incentivo à cultura”.
O que a direção da Osesp e a secretaria de cultura descrevem com palavras brandas é externado com exaltação e nervosismo nos bastidores do mundo cultural. Gestores afirmam que, se o governo insistir no travamento da Lei Rouanet, a partir do ano que vem diversas instituições culturais não terão meios de seguir com suas atividades.
Guerra à cultura
Em 2021, o governo Bolsonaro publicou um controverso decreto que subverteu a natureza conceitual da Lei Rouanet. (Na época, a oposição e a Ordem dos Advogados do Brasil apresentaram uma ADPF, arguição de descumprimento de preceito fundamental, que até hoje está em análise no Supremo Tribunal Federal.) Em seguida, o governo editou uma draconiana Instrução Normativa (IN), que é o instrumento que estabelece as regras para a operacionalidade da lei. Se a burocracia da SEC já antes não dava conta da análise dos projetos, as novas determinações complicaram ainda mais a vida das instituições e dos órgãos culturais.
A Instrução Normativa, ao limitar o escopo da lei, excluiu salas de concertos, teatros de prosa, teatros de ópera com corpos estáveis e companhias de teatro, dança e ópera independentes que realizam temporadas. Além disso, as regras restringem as atividades dos grupos as suas próprias sedes, tornando inviável a circulação de espetáculos, turnês ou itinerâncias. Limites de preços para pagamento de aluguel de teatros, valor máximo de cachês artísticos e tetos para pagamento de direitos autorais e Ecad não refletem a prática do mercado, inviabilizando eventos, impedindo a apresentação de bons artistas e prejudicando a programação de obras de compositores brasileiros ou de obras que não estão em domínio público. A IN também determina que um patrocinador não pode apoiar o mesmo projeto por mais de dois anos consecutivos, o que na prática compromete o trabalho de instituições que realizam temporadas construindo uma relação de confiança e duradoura com seus mantenedores.
Assim, foi unânime a crítica do setor cultural à IN, fazendo com que diversas associações representativas – entre elas também o Fórum Brasileiro de Ópera, Dança e Música de Concerto – redigissem documentos apontando os entraves e propondo modificações, quando não reivindicando o total cancelamento do instrumento. A própria Funarte, órgão federal vinculado à Secretaria Especial de Cultura, emitiu uma nota técnica com sugestões de alterações da Instrução Normativa.
Após as pressões, e com a nova direção na SEC – Hélio Ferraz assumiu como secretário no lugar de Mário Frias, que deixou o cargo para concorrer às eleições –, finalmente ontem, após longa expectativa, uma nova Instrução Normativa foi publicada. Infelizmente, contudo, a esperança de uma revisão acabou frustrada: a nova IN alterou apenas alguns parâmetros legais, deixando intocados os principais pontos críticos da versão anterior.
Os sertanejos
A discussão em torno da Lei Rouanet ganhou uma nova dimensão após o cantor sertanejo Zé Neto ter feito críticas à cantora Anitta – desafeto de Bolsonaro –, afirmando que, ao contrário dela, ele não dependia da Lei Rouanet para as suas apresentações (depois Anitta publicamente afirmou que ela também nunca se utilizou da lei). Ocorre que o show que Zé Neto estava realizando, na cidade de Sorriso, em Mato Grosso, era patrocinado diretamente com recursos públicos da prefeitura.
O acontecimento acabou chamando a atenção para uma prática comum (e complexa), que são os shows e eventos culturais contratados e bancados diretamente pelo poder público. Descobriu-se que muitas vezes, e sem o devido rigor fiscal, pequenos municípios brasileiros promovem shows com estrelas sertanejas cujos cachês ultrapassam a cifra do milhão.
A história toda acabou se refletindo positivamente sobre a Lei Rouanet, já que nela os recursos públicos investidos são transparentes e podem ser acessados por todos, o valor dos serviços e cachês têm limites, os gastos são fiscalizados e os promotores prestam contas em diversas instâncias.
Para o enquadramento de uma ação cultural na Lei Rouanet, o proponente tem que seguir um longo percurso legal, que exige um objetivo, uma justificativa, o detalhamento do projeto, a descrição e o cronograma de trabalho, a definição do público que será beneficiado, a contrapartida social e de acessibilidade, um detalhado e rigoroso orçamento com teto de valores, pareceres de especialistas e aprovação pela Cnic. Depois, é necessário captar os patrocínios de empresas privadas, que por sua vez também vão analisar o projeto. E, para quitação final, o proponente tem que apresentar uma detalhada prestação de contas.
A Lei Rouanet é uma lei republicana que atende milhares de projetos no Brasil, de grandes instituições públicas a pequenas iniciativas privadas. E, claro, é absolutamente legítimo que ela seja sempre revista e aprimorada.
Mas não é isso a que se propõe o governo Bolsonaro. A sua guerra contra a cultura joga no lixo uma das melhores legislações culturais brasileiras de todos os tempos. É preciso defender a Lei Rouanet. Sem ela, a cultura perecerá.
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