Diário de Varsóvia: a gala dos vencedores do Concurso Chopin

O jornalista Irineu Franco Perpetuo está em Varsóvia, na Polônia, para assistir às finais do XVII Concurso Chopin; acompanhe aqui seus comentários diários sobre a premiação.

Dia 4 – 21/10/2021 – Noite de gala

O XVIII Concurso Chopin mudou de palco para o concerto de premiação dos vencedores. É preciso caminhar 15 minutos para se deslocar da Filarmônica Nacional, onde as provas ocorreram, até a Ópera Nacional Polonesa, onde foi a apresentação de gala. O Teatro Wielki (palavra polonesa para grande, como acontece com “bolchói”, em russo) foi fundado em 1833, porém, como muita coisa em Varsóvia, sofreu bombardeio na II Guerra Mundial, sendo completamente reconstruído – em estilo diferente – em 1965.

No palco – todos sem máscara –, membros do júri, os doze finalistas e as celebridades encarregadas de entregarem os prêmios. A julgar pelos aplausos, a plateia gostaria que a russo-armênia Eva Gregorian tivesse recebido algo mais do que uma menção honrosa. Como nas Olimpíadas, o concurso confere medalhas de ouro, prata e bronze para os três primeiros colocados – e o prêmio do vencedor, o canadense Bruce Liu, foi entregue pelo presidente da Polônia, Andrzej Duda.

Após a solenidade, o centro do palco foi ocupado pelo Fazioli em que os laureados tocariam. Confesso que não fiquei muito impressionado com a execução do Estudo Op. 10 nº 3 (conhecido como Tristesse) do sexto colocado, o canadense J. J. Jun Li Bui (a exemplo de Liu, pupilo de um dos membros do júri do concurso, o vietnamita Dang Thai Son). As coisas melhoraram com a italiana Leonora Armellini, com uma leitura elegante do Sostenuto (Valsa) em mi bemol maior, WN 53, e uma interpretação sóbria da Balada em lá bemol maior, Op. 47.

Mas quem realmente conduziu a apresentação a um outro patamar foi a quarta colocada, a japonesa Aimi Kobayashi. Ela fez uma seleção bastante pessoal de cinco prelúdios de Chopin: o quarto, o décimo segundo, o décimo sétimo, o vigésimo terceiro e o vigésimo quarto. Agregando peças contrastantes, pôde demonstrar as múltiplas facetas de seu talento (lirismo, agilidade, virtuosismo) e, ao mesmo tempo, construiu com as peças um arco dramático interessante. Kobayashi foi a primeira pianista da noite a receber aplausos suficientes para voltar ao palco (o que virou praxe com os demais artistas). Tomara que alguém se interesse em levar ao Brasil seu talento poético.

A quarta colocação da japonesa foi compartilhada com o premiado “da casa”, Jakub Kuszlik, aluno da presidente do júri, Katarzyna Popowa-Zydron. Kuszlik recebeu ainda o prêmio pela melhor execução de mazurca e, por isso, optou por interpretar as quatro mazurcas opus 30.

Depois dele, o espanhol Martín García García, medalha de bronze e prêmio especial por melhor performance de um concerto, executou com leveza e elegância o Improviso em sol bemol maior, Op. 51, e tocou com muito sabor a Valsa em lá bemol maior, Op. 34, nº 1. Na sequência, vieram os dois candidatos que dividiram a medalha de prata. Kiohey Sorita (aluno de Piotr Paleczny, membro do júri) escolheu uma obra pouco executada de Chopin, o Rondó à la Mazur em fá maior, Op. 5, e demonstrou bastante criatividade e um toque muito refinado em sua interpretação.

Jà o ítalo-esloveno Alexander Gadjiev, que levou ainda o prêmio especial por melhor interpretação de sonata, brindou-nos com uma execução assertiva da Polonaise em fá sustenido maior, Op. 44.

Foi a vez, então, de a Filarmônica de Varsóvia, sob a batuta sempre segura de Andrzej Boreyko, acompanhar Bruce Liu (outro discípulo de Son) no Concerto nº 1 em mi menor, Op. 11. Liu repetiu a intensidade da performance da véspera, e foi amplamente ovacionado. Você pode conferir o concerto de gala abaixo:

 

Dia 3 – 20/10/2021 – Revelados os vencedores do concurso

Na XVIII edição do Concurso Chopin, o último foi o primeiro. Derradeiro dos doze finalistas a se apresentar, na quarta-feira, dia 20, o canadense Bruce (Xiaoyu) Liu foi o grande vencedor do certame – inicialmente marcado para o ano passado, porém adiado para 2021 devido à pandemia.

Nascido em Paris, em 8 de maio de 1997, Liu é aluno de um dos membros do júri do concurso – o vietnamita Dang Thai Son. Ele arrebatou o público ao comandar, a partir do teclado de um Fazioli, uma performance sólida e poderosa do Concerto nº 1, de Chopin – a plateia literalmente urrava, a orquestra aplaudia, e mesmo alguns jurados não se contiveram e bateram palmas.

Liu toca amanhã, na Ópera Nacional da Polônia, como parte do prêmio. E, em dezembro, o Instituto Chopin patrocina sua turnê sul-americana, organizada pela Sociedade Chopin do Brasil, com apoio da Embaixada da Polônia. A excursão começa dia 8, em Buenos Aires, e termina dia 15, em Brasília, com São Paulo e Rio de Janeiro no meio do caminho.

Iniciada às 18h, a última eliminatória terminou por volta das 22h, mas os resultados só foram anunciados às 2h. Tamanha demora possivelmente resultou de divisão no grande colegiado de 17 nomes que formam o júri da competição – e do equilíbrio entre os candidatos.

Em vez dos seis laureados de sempre, o número de premiados foi estendido para oito. O segundo lugar foi dividido entre o ítalo-esloveno Alexander Gadjiev (n. 1994, laureado ainda com o Prêmio Krystian Zimerman pela melhor execução de sonata) e o japonês Kyohei Sorita (n. 1994) – também ele pupilo de um membro do júri, o polonês Piotr Paleczny.

O terceiro lugar ficou para o espanhol Martín García García (n. 1996) – laureado ainda com o Prêmio da Filarmônica de Varsóvia pela melhor performance de um concerto; e sua execução do Concerto nº 2 de Chopin foi realmente especial. No quarto posto, novamente, houve empate. Finalista da edição anterior do prêmio, em 2015, a japonesa Aimi Kobayashi (n. 1995) – que realizou uma leitura extremamente poética e atmosférica do Concerto nº 1 de Chopin – compartilhou esta colocação com o polonês Jakub Kuszlik (n. 1996) – pupilo da presidente do júri da competição, Katarzyna Popowa-Zydron, e que também levou o prêmio da Rádio Polonesa pela melhor interpretação de mazurcas. A italiana Laura Armellini (n. 1992) ficou em quinto lugar, enquanto o canadense J. J. Jun Li Bui (n. 2004) – outro discípulo de Son – acabou na sexta colocação.

As provas do último dia (Liu, Kobayashi, Kuszlik e o sul-coreano Hyuk Lee) podem ser assistidas abaixo:

 

Dia 2 – 19/10/2021 – O outro concerto

Ao caminhar desavisadamente pelas ruas de Varsóvia, tem-se a impressão de que, aqui, a pandemia acabou – ou os poloneses confiam nos poderes miraculosos de sua vodca contra o vírus. O fato é que, mais do que o biotipo, os trajes ou o idioma, o que denuncia um estrangeiro por aqui é o hábito de usar máscara.

Na Filarmônica Nacional, onde ocorrem as provas finais do XVIII Concurso Chopin, embora não haja restrições quanto à lotação (a casa esteve 100% cheia ontem e hoje, e não há dúvidas de que o fenômeno se repetirá amanhã), o uso de máscaras é obrigatório e fiscalizado com rigor – para o público. Orquestra, regente e candidatos não usam máscara, nem observam qualquer tipo de distanciamento. No júri, a adesão ao artefato é variada. Dependendo do jurado, a máscara pode se converter em bandana, pingente ou cachecol – ou ser simplesmente ignorada.

Hoje, minha impressão foi de uma prova ainda melhor do que ontem – mas talvez isso tenha menos a ver com os candidatos do que com minhas condições pessoais. Na segunda-feira, após 15 horas de voo (as quatro últimas comprimido em uma lata de sardinhas que a TAP chama de avião), mal tive tempo de me trocar para pular no auditório.  

A exemplo dos candidatos da véspera, o canadense J J Jun Li Bui optou pelo Concerto nº 1 em mi menor, op. 11, do compositor obrigatório – Chopin. Beneficiado pela flexibilidade do sempre atento Andrzej Boreyko, titular da Filarmônica de Varsóvia, que acompanha todos os candidatos, fez uma prova bastante sólida, e sua sonoridade colorida mereceu aplausos do público – embora o membro do júri de quem ele é aluno no Conservatório Oberlin, o vietnamita Dang Thai Son, tenha se mantido impassível.

Na sequência, o ítalo-esloveno Alexander Gadjiev manteve a escolha de instrumento de Bui – um Kawai –, mas felizmente trocou de peça, oferecendo à plateia a primeira chance de ouvir o Concerto nº 2 em fá menor, op. 21. Devo confessar que tenho um carinho especial por essa partitura; talvez por Nelson Freire (que fez aniversário ontem) tocá-la de modo tão sensível; talvez por sua ligação evidente com a ópera italiana, com um Larghetto que é puro teatro, evocando a paixão de juventude de Chopin pela cantora Konstancja Gladkowska; ou talvez pelo frescor juvenil do recurso do col legno no movimento final. Amparado, no movimento lento, por um inspirado solo do fagote da orquestra, e animado, no terceiro movimento, por uma serelepe chamada da trompa solo, Gadjiev tocou o concerto com adequado lirismo.

Daí veio o espanhol Martín García García (é assim mesmo, repetido), que manteve o concerto – o nº 2 – mas trocou de instrumento, optando por um Fazioli. Ouvir um artefato dessa marca é sempre uma experiência singular, mas o piano não toca sozinho, e García García é o detentor de todos os méritos de uma leitura apaixonada sem exageros, um som cheio e robusto nos graves, e um toque poético que chegou a produzir, por vezes, pianíssimos etéreos. Foi aplaudido pelo público (que o fez voltar ao palco para mais agradecimentos), pela orquestra e até – o que pode ter significado no resultado final do concurso – por alguns membros do júri, que se deixaram levar pela emoção do momento e abandonaram a circunspecção exigida pela ocasião.

Depois dele, o elevador do palco da Filarmônica funcionou mais uma vez, para levar o Fazioli embora e trazer o único Steinway da noite. A russo-armênia Eva Gevorgyan optou pelo Concerto nº 1, e suportou com galhardia a pressão de se apresentar depois de um candidato tão aclamado como o espanhol. Digna representante de uma tradição que fez muita história em edições anteriores do concurso, mostrou uma sonoridade cristalina e definida, construindo um belo arco dramático no segundo movimento.

Amanhã é o dia de ouvir os quatro últimos candidatos. Todas as provas estão sendo transmitidas ao vivo, no YouTube, no canal do Instituto Chopin, e continuam armazenadas por lá. 

Veja abaixo a apresentação do dia 19/10:

[Irineu Franco Perpetuo viajou à Polônia a convite do Instituto Chopin]

 

Dia 1 – 18/10/2021 – A chegada

Aconteceu com o XVIII Concurso Chopin mais ou menos a mesma coisa que ocorreu com as Olimpíadas de Tóquio: marcado para 2020, o evento teve que ser adiado devido à pandemia, e está ocorrendo agora, em Varsóvia.

Criado em 1927, o concurso passou a ser quinquenal em 1955. Além dos três primeiros prêmios (40 mil, 30 mil e 20 mil euros, respectivamente), há gratificações previstas (como em todo concurso internacional deste nível, alguma das premiações pode não ser atribuída) para todos os finalistas. Porém, muito maior do que a recompensa em dinheiro, interessa o prestígio que um certame desses confere. Ao longo de sua história, a competição, na qual se tocam exclusivamente obras de Chopin, glória nacional polonesa, consagrou astros como Martha Argerich, Maurizio Pollini, Lev Obórin e Krystian Zimerman, dentre muitos outros.

Cheguei hoje a Varsóvia pelo Aeroporto Fryderyk Chopin para acompanhar as finais do concurso: 12 candidatos, ao longo de três dias, escolhem um dos dois concertos para piano de Chopin para tocar com a Filarmônica de Varsóvia, regida por seu titular, Andrzej Boreyko. Maestro e orquestra conhecem a música de cor e salteado, e Boreyko, excelente acompanhador (formado na sólida escola do Conservatório Rímski-Kórsakov, de sua cidade natal, São Petersburgo), molda-se instantaneamente aos diversos matizes das personalidades musicais distintas de cada um dos concorrentes.

O outono de Varsóvia pode ser bem mais frio do que o inverno brasileiro: não fazem mais de dez graus do lado de fora da Filarmônica Nacional – prédio construído em 1901, inspirado pela Ópera de Paris, arrasado por bombardeios na II Guerra Mundial, e reinaugurado em 1955 – em estilo completamente distinto do edifício anterior – justamente com a quinta edição do Concurso Chopin.

Adam Harasiewicz, medalha de ouro naquela oportunidade, é um dos membros do júri presidido pela polonesa Katarzyna Popova-Zydron (menção honrosa em 1975), ao lado de laureados em edições anteriores, como o brasileiro Arthur Moreira Lima (segundo colocado em 1965), o vietnamita Dang Thai Son (primeiro em 1980), o francês Philippe Giusiano (segundo em 1995), a chinesa Sa Chen (quarta em 2000), a georgiana Dina Yoffe (segunda em 1975), o norte-americano Kevin Kenner (segundo em 1990), a japonesa Akiko Ebi (quinta em 1980), o argentino Nelson Goerner (menção honrosa em 1995) e os poloneses Krzysztof Jablonski (terceiro em 1985), Janusz Olejniczak (sexto em 1970), Piotr Paleczny (terceiro em 1970), Ewa Poblocka (quinta em 1980) e Wojcieh Switala (menção honrosa em 1990). Apenas o russo Dmitri Alexeev e o norte-americano John Rink, na comissão julgadora, não foram premiados em edições anteriores do evento.

Balzac dizia que as vogais, em polonês, são tão raras, que o idioma as protege detrás de fortalezas de consoantes. Mas a música é o idioma que se pretende universal. Nesse primeiro dia de competição, a Filarmônica estava lotada para ouvir uma partitura convertida em peça de confronto: os quatro candidatos optaram pelo Concerto em mi menor, op. 11 – segundo dos compostos por Chopin, mas conhecido como nº 1 por ter sido o primeiro a ser publicado.

Seria de se esperar que a torcida estivesse inclinada pelo candidato que abriu a prova, o polonês Kamil Pacholec. De fato, Pacholec recebeu uma acolhida calorosa do público – mas assim foi também com todas as outras provas, efusivamente aplaudidas. Afinal, a Polônia já se fazia vitoriosa simplesmente pelo fato de gente de tantas nacionalidades abraçar seu compositor maior.

Pouca coisa poderia contrastar tanto com o Chopin relativamente sóbrio de Pacholec quanto o Chopin de dedos de aço do chinês Hao Rao – uma leitura que parecia informada por Liszt e apontar para Rachmaninov, levando de vencida um celular insistente que teimava em soar no primeiro movimento, bem como uma ruidosa batida de cadeira da plateia no terceiro. Em seguida, veio outro oriental, Kyohei Sorita – japonês que é aluno de Paleczny em Varsóvia, e parece ter assimilado a concepção polonesa de estilo do compositor.

Após essa trinca, a italiana Leonora Armellini soou como uma quebra. Pois, além de ser a única mulher da noite, ela dispensou o Steinway, instrumento escolhido por seus concorrentes, e fez com que fosse levado ao palco um Fazioli. Para quem vem do Brasil, a oportunidade de ouvir um Fazioli ao vivo é um privilégio a ser degustado; a leitura de Armellini foi ágil e elegante e – talvez pelo empenho da diminuta, porém ruidosa torcida italiana – acabou sendo a mais aplaudida da noite, com chamados para voltar ao palco.

As provas estão sendo transmitidas ao vivo pelo canal do Instituto Chopin no YouTube. Elas começam às 18h, horário de Varsóvia – 13h do Brasil. Além disso, continuam arquivadas por lá. Se você quiser assistir a essa que acabei de comentar, clique abaixo:

[Irineu Franco Perpetuo viajou à Polônia a convite do Instituto Chopin]

A Filharmonia Nadorowa, onde acontecem as finais do Concurso Chopin [Reprodução]
A Filarmônica Nacional de Varsóvia, onde acontecem as finais do Concurso Chopin [Reprodução]

 

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