Dois gênios e um pouco de história

por Nelson Rubens Kunze 28/10/2023

De Dresden a Bayreuth, os encontros e desencontros de Gottfried Semper e Richard Wagner 

Em artigo na Revista CONCERTO deste mês de outubro, o maestro Júlio Medaglia lembra os 130 anos de nascimento do professor, maestro e compositor alemão Artur Hartmann, que teve importante atividade aqui no Brasil nas décadas de 1950 e 1960. 

Hartmann foi o meu avô materno, mas não o conheci. Quando eu soube mais sobre ele e descobri que ele havia sido músico, eu já estudava no Conservatório do Brooklin, de Sígrido Levental, e já tocava flauta na antiga Orquestra Jovem do Theatro Municipal de São Paulo. 

Hartmann, como Medaglia conta no artigo, viveu e trabalhou muitos anos em Dresden, capital da Saxônia. Natural, portanto, que eu tenha um interesse especial por essa cidade, que visitei quando era estudante de música em Berlim, nos anos 1980 (não me esquecerei da data em que saí de trem de Berlim, 27 de abril de 1986, um dia após o trágico acidente na usina atômica de Tchernobil...).

Naquela época, diversos monumentos de Dresden ainda eram ruínas que nos lembravam dos ataques da Força Aérea Real Britânica nos estertores da Segunda Guerra Mundial. Na noite do dia 13 ao dia 14 de fevereiro de 1945, os aliados transformaram aquela cidade, considerada então uma das mais belas da Europa, em uma bola de fogo. As vidas se perderam para sempre, mas um desses monumentos, a centenária casa de ópera Semperoper, havia sido restaurado em todo o seu esplendor e tinha sido reinaugurado no ano anterior.

A ópera deve o seu nome ao arquiteto que a concebeu, Gottfried Semper (1803-1879). Ele foi um dos mais destacados construtores de seu tempo, tendo realizado trabalhos que são marcos urbanísticos e arquitetônicos em cidades como Zurique, Viena e Dresden – nesta cidade, além da ópera, Semper foi autor também da antiga sinagoga (destruída na noite de cristais) e da Gemäldegalerie Alte Meister, a Pinacoteca, que, como a ópera, foi bombardeada na guerra e reconstruída.

Gottfried Semper nasceu em Hamburgo, em 1803. Além de projetista, foi também professor e pesquisador. Após estudos em Göttingen e Munique, ele trabalhou em Paris onde viveu a Revolução de Julho de 1830, movimento libertário que marcou a queda definitiva da monarquia dos Bourbons na França.

 

Semperoper, a primeira, a segunda e a terceira

Em 1834, Semper tornou-se professor de arquitetura na Academia Real das Artes Plásticas em Dresden. Ali, entre os anos de 1838 e 1841, construiu o prédio da primeira Semperoper, que então era chamado de Teatro da Corte Real. O novo teatro substituiu o Pequeno Teatro da Corte, erigido em 1755, e que em início do século XIX fora dirigido por Carl Maria von Weber. 

A primeira Semperoper, por volta de 1860 (reprodução, arquivo da Sächsische Staatstheater Dresden)
A primeira Semperoper, por volta de 1860 (reprodução, arquivo da Sächsischen Staatstheater Dresden)

Em 1842, portanto um ano após a inauguração desta primeira Semperoper, Richard Wagner (1813-1833) foi contratado como maestro da casa. Naquele período, estreou ali três de suas óperas: Rienzi (1842), O navio fantasma (1843) e Tannhäuser (1845). 

Como Wagner, Semper também apoiou e se engajou na revolta liberal e democrática de 1849 em Dresden, que, como em outras cidades alemãs e europeias, se rebelava contra o status quo autoritário das monarquias. Semper participou ativamente das batalhas e contribuiu com seus conhecimentos técnicos para a montagem de barricadas no centro da cidade. Após a derrota do levante, Semper, assim como Wagner, teve de fugir, inicialmente para Zurique, depois para Paris e finalmente Londres. Ali, nos tempos que se seguiram, dedicou-se especialmente ao ensino e à pesquisa teórica. 

Desde aqueles anos em Dresden, as histórias de Semper e Wagner seguiram se cruzando ao longo de suas vidas. Assim, em 1853, Wagner envia a Semper um rascunho do libreto do Anel do nibelungo, pedindo-lhe a sua opinião. E é por intermédio de Wagner, que então morava em Zurique, que Semper toma conhecimento dos planos da construção de uma Escola Superior naquela cidade, o que o leva a mudar-se para lá. Em Zurique, Semper segue a carreira docente e retoma a sua atividade de projetista criando, entre os anos de 1858 e 1864, a planta para o prédio principal da Escola Politécnica (hoje a ETH Zürich). 

Alguns anos depois, em 1869, aquele primeiro teatro de Semper em Dresden é destruído por um incêndio. O arquiteto projeta então um novo prédio, o Segundo Teatro da Corte Real, inaugurado em 1878, e cuja construção é realizada com a supervisão de seu filho, Manfred. E é este prédio que acabou destruído na fatídica noite de fevereiro de 1945.

A segunda Semperoper, por volta de 1930 (reprodução, arquivo da Sächsischen Staatstheater Dresden)
A segunda Semperoper, por volta de 1930 (reprodução, arquivo da Sächsischen Staatstheater Dresden)

Passaram-se 40 anos para que o terceiro teatro de Semper, o atual, surgisse, já então no governo da antiga República Democrática Alemã. Em um meticuloso processo de restauro feito a partir de documentos históricos, a nova Semperoper foi finalmente inaugurada, com todo o seu esplendor, em 1985.

Já escrevi sobre as estreias de Wagner, mas, ao longo de sua história, a Semperoper abrigou outras dezenas de primeiras audições de óperas de compositores tão diferentes como Richard Strauss (entre outras Salome, Elektra e O cavaleiro da rosa), Kurt Weill ou Paul Hindemith. E vale lembrar, que a orquestra da casa, a Sächsische Staatskapelle Dresden, é um dos conjuntos instrumentais mais antigos do mundo, foi fundado em 1548 (portanto, antes de Monteverdi escrever a primeira ópera da história da música...). 

A Semperoper atual, em foto de 2013 (wikimedia commons, Avda)
A Semperoper atual, em foto de 2013 (wikimedia commons, Avda)

 

Os teatros de Wagner

Mas há ainda outra passagem interessante da relação de Semper com Wagner, e é a seguinte. Por indicação do compositor, em 1864 Semper é contratado pelo rei Ludwig II (grande patrono de Wagner) para projetar o Teatro Richard Wagner de Munique. Semper não fez por menos, e desenhou um prédio monumental. Seguindo as instruções de Wagner, que queria um teatro mais democrático, Semper criou uma plateia em um piso único, sem camarotes. Wagner, quando conheceu o projeto, escreveu: “É um milagre: minha ideia, minhas indicações e exigências foram totalmente compreendidas pelo gênio de Semper. E o que é o máximo: o projeto foi feito de uma maneira tão perfeitamente original e funcional, que ficamos também admirados pela sublime simplicidade da concepção”.

Mas houve um problema. A corte implicou com as pretensões de Wagner e com os gastos do rei Ludwig, o que gerou uma crise que acabou forçando o rei a banir o compositor da Baviera e engavetar o projeto. Wagner mudou-se então para a Suíça, mas conseguiu manter a sua polpuda pensão. 

Quem se deu mal mesmo, porém, foi Semper. O arquiteto sentiu-se abandonado, rompeu as relações com Wagner e processou a corte, reclamando que não fora remunerado corretamente pelos serviços prestados.

Semper acabou indo para Viena e, em 1869, foi contratado para realizar diversos trabalhos públicos, como o redesenho da famosa Ringstrasse e o projeto do Burgtheater, com suas magníficas escadarias.

Consta que Wagner e Semper ainda se encontraram uma vez, em Viena, no ano de 1875, e que então teriam se reconciliado. Semper já estava doente, vindo a morrer quatro anos depois, em 1879, durante uma viagem a Roma.

Wagner viveria ainda até 1883. Em 1876 realizou, com a ajuda decisiva de Ludwig, a primeira edição do Festival de Bayreuth no novo teatro Festspielhaus, especialmente construído para as suas óperas. 

O que Semper nunca soube, é que o Festspielhaus de Wagner copiou de seu projeto daquele nunca construído Teatro Richard Wagner de Munique, pelo qual ele havia processado a corte, a plateia em piso único, sem camarotes...

Encontros e desencontros de dois gênios que fizeram história.

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