Quarteto Boulanger: um trabalho inspirado e urgente

por Camila Fresca 02/05/2022

Há duas semanas, o Quarteto Boulanger fez sua estreia paulistana. No palco da Sala do Conservatório, na Praça das Artes, o grupo mostrou, em dois recitais, peças do disco recém-lançado “Entre brumas e fúrias”. A apresentação do grupo mineiro foi uma grata surpresa proporcionada pelo edital de chamamento de projetos artísticos que o Theatro Municipal de São Paulo promoveu no ano passado.

Formado pela violinista Jovana Trifunovic, a violista Flávia Motta, a violoncelista Lina Radovanovic e a pianista Ayumi Shigeta, todas integrantes da Filarmônica de Minas Gerais, o Quarteto Boulanger foi fundado em 2016 e já havia lançado um álbum dedicado a obras do compositor Harry Crowl. “Entre brumas e fúrias” é igualmente dedicado à música contemporânea, dessa vez voltado a compositoras.

O título do álbum nasceu inspirado por um poema de Denise Fraga intitulado “Oração da fúria” (veja aqui). Durante a pandemia, o vídeo da atriz declamando seus versos – Santo Deus / Não aplaque a minha fúria / Projeta a minha indignação dos dias iguais, dos dias banais. / Renove a minha perplexidade diante do absurdo [...] para que eu possa forjar o magma da minha fúria em assertividade e paixão [...] – circulou pela internet e chegou até as integrantes do grupo, que o compartilharam com as compositoras do projeto – Marisa Rezende, Valéria Bonafé, Silvia de Lucca, Tatiana Catanzaro e Maria Helena Rosas Fernandes.

Na apresentação do CD, o grupo afirma: “Atentas às brumas que envolvem o futuro e às fúrias decorrentes da banalização da vida neste século XXI, as musicistas do Quarteto Boulanger decidiram, com seu fazer artístico, encomendar cinco peças a cinco compositoras brasileiras, com idades entre 37 e 88 anos”. 

Na terça-feira, 19 de abril, o clima era de comoção. Quebrando o habitual protocolo das roupas pretas, as integrantes do quarteto entraram em cena vestidas de branco, e iniciaram o concerto com Pequenos gestos, de Marisa Rezende, obra que, a partir do diálogo entre os quatro instrumentos, procura simbolizar uma conversa entre pessoas na qual há muitos elementos em jogo. Na sequência, a luminosa Carm’in versos – contração das palavras carmim e versos – de Silvia de Lucca, procura explorar “o verso e o inverso das brumas e fúrias” que vivemos nos dias atuais. 

Entre as duas peças, a violista Flávia Motta falou sobre a trajetória do disco e a relação com as autoras que, aliás, estavam todas presentes, o que deu significação especial à ocasião. Também presente estava a atriz Denise Fraga, emocionada por seu poema ter sido o motor gerador de todo o trabalho. 

A última peça do disco apresentada nessa noite foi Mãe-maré, de Valéria Bonafé, que exigiu um reordenamento do palco. Pufes e cilindros de vidro, nos quais foram depositados os celulares das instrumentistas, compuseram o cenário, complementado por iluminação especial. Criada a partir da experiência pós-parto da compositora, a obra eletroacústica propõe uma outra relação com o discurso musical, no qual frases ou fragmentos melódicos importam menos do que o desenrolar da sonoridade; o compromisso com a escuta é o que vai guiando e surpreendendo o ouvinte. Bonita e impactante, Mãe-maré foi aplaudida de pé pelo público. 

A pianista Ayumi Shigeta lembrou que devemos estimular a composição contemporânea de mulheres, mas que elas sempre fizeram música, apesar das adversidades. Foi a forma de introduzir a última peça do concerto, o Quarteto com piano op.28, escrito em 1883 pela alemã Louise Adolpha Le Beau (1850-1927). Típico exemplar do romantismo germânico, é uma obra densa estruturada em quatro movimentos. 

Adolpha Le Beau foi aluna de artistas célebres como Clara Schumann e Franz Lachner. Iniciou a carreira como pianista e aos poucos foi consolidando-se como compositora. Ela costumava ser apontada pelos maiores críticos de sua época como a primeira mulher a compor com sucesso obras de larga escala. Embora a informação seja historicamente incorreta, isso mostra o prestígio que Le Beau tinha entre seus contemporâneos. 

Eduard Hanslick, amigo de Brahms e um dos mais influentes críticos do século XIX, conheceu Louise Adolpha Le Beau na mesma época em que ela escreveu seu Quarteto op.28. Reconhecia suas virtudes como compositora, e por isso escrevia críticas como a publicada em Berlim em 1886: “A todo momento, proporções simétricas, boa harmonia e modulação correta e independente intervindo nas vozes graves, como você dificilmente esperaria de uma mulher. Mas você não encontrará uma mudança audaciosa ou um episódio surpreendente com esta mulher, e se ela entrar em uma modulação mais distante inadvertidamente, ela pensará – algo tipicamente feminino – em como voltar para casa rápido novamente. As grandes formas da música de câmara cultivadas por Mademoiselle Le Beau como a primeira de seu sexo reforçam nosso respeito pela compositora, mas também justificam a cautela”. 

A proposta do Quarteto Boulanger – desde o título do grupo, que homenageia a grande educadora francesa Nadia Boulanger, bem como o fato de ser integrado por mulheres – e do disco “Entre brumas e fúrias” insere-se num esforço coletivo de maior visibilidade e equidade para as mulheres, movimento que tem acontecido na música clássica em todo o mundo e que, como os exemplos de ontem e hoje provam, segue urgente.

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Quarteto Boulanger [Divulgação]
Quarteto Boulanger [Divulgação]

 

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Legal que a diversidade no repertório do Quarteto honra Nadia Boulanger de modo magnificentíssimo, considerando-se, justamente, a diversidade de orientações estéticas dos alunos, hors pair, que ela formou ao longo do séc. XX.

Agora, o comentário desse Eduard Hanslick a respeito da Louise Le Beau é de uma estultice à toda prova! A opinião expressa por ele é absurda até para o tempo em que foi publicada. O pior é que, aparentemente, a intenção do crítico era elogiar. O desastre opinativo nessa ocasião é indigno de um virginiano - deve ser culpa do ascendente...

Lendo a opinião de Eduard Hanslick - um intelectual que deveria ser esclarecido -, vemos como é dura a luta das mulheres. O preconceito é tão arraigado que segue até hoje...

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