Também em música, o século XXI é chinês

por João Marcos Coelho 01/10/2019

O encontro das culturas oriental e ocidental resulta na abertura de um mundo maravilhoso de novas sonoridades

No mundo econômico, é corrente e até batida, de tão repetida, a expressão “o século XXI é chinês, como o século XX foi dos Estados Unidos”. Quando se fala em música, entretanto, a imagem que vem à cabeça é a de que só nas últimas décadas a China se abriu para a música clássica ocidental – manteve-se fechada por séculos. Essa é uma meia verdade que escamoteia um panorama de tinturas mais nuançadas.

Um exemplo? A Orquestra Sinfônica de Xangai é três anos mais antiga que a Filarmônica de Berlim. Esta é de 1882, e a de Xangai foi fundada em 1879. Sintomaticamente, seu CD de estreia na Deutsche Grammophon intitula-se “Gateways”, que se pode traduzir como “portas de entrada”, com duas obras do compositor chinês Qigang Chen e as Danças sinfônicas  de Rachmaninov. 

É verdade que a orquestra chinesa tinha mais cara de banda em 1879 – e era formada por expatriados ocidentais que lá viviam. Só em 1919 promoveram concertos à ocidental. Mas o marketing exige essas meias mentiras. Formalmente, a música ocidental chegou à China em 1601. Pois foi o ano em que o missionário jesuíta Matteo Ricci deu um cravo de presente a Wanli, o mais longevo dos imperadores da era Ming.  

Mais um dado importante: a palavra francesa chinoiserie expressa o fascínio ocidental pela arte e pela cultura chinesas, em geral reproduzidas na pintura e nos objetos de decoração, desde o século XVIII. No entanto, poetas e músicos dos últimos dois séculos também se encantaram a ponto de imitar e assimilar o estilo, a atmosfera, da arte e da cultura chinesas. Não por acaso, a última faixa do CD da Sinfônica de Xangai inclui o célebre Tambourin do virtuose austríaco do violino Fritz Kreisler (1875-1962), em arranjo de McAlister para violino e orquestra, com Maxim Vengerov. Aliás, o regente Long Yu, de 55 anos, afirmou em entrevista recente que tem feito encomendas de obras a compositores “ocidentais” como o polonês Penderecki.  

Orquestra Sinfônica de Xangai [Divulgação]
Orquestra Sinfônica de Xangai [Divulgação]

O encontro dessas duas culturas resulta na abertura de um mundo maravilhoso de novas sonoridades. É o que hoje o planeta saboreia. Um riquíssimo vaivém entre músicos fascinados pelos instrumentos e compositores ocidentais magnetizados pelas sonoridades e pela estética chinesas, de um lado, e, de outro, os chineses que, desde o cravo de 1601, embarcaram num processo de intercâmbio cultural que enriquece o caleidoscópio da música contemporânea no planeta.

É fato que durante a revolução cultural promovida por Mao Tsé-Tung entre 1966 e 1976 pianos e outros instrumentos “ocidentais” foram destruídos, assim como partituras e gravações de música ocidental. Beethoven, que já havia sido símbolo positivo na China desde o século XIX, de repente virou anátema, e a execução de sua música foi proibida. Houve músicos perseguidos e mortos só por praticarem a música ocidental. 

Contudo, foi um interregno de poucos anos, se olharmos em perspectiva histórica. Atualmente, contam-se aos milhões os estudantes de piano na China, estimulados pelo sucesso global de Lang Lang. Na cena ocidental do século XX, destaca-se um excepcional Toru Takemitsu (1930-96), que não só assimilou a música de Debussy, Messiaen e John Cage, como as colocou num caldeirão chinês do qual resultou uma música personalíssima. E hoje temos Tan Dun, de 62 anos, como Takemitsu, autor de dezenas de trilhas sonoras, óperas e música concertante que funde as duas culturas.

Estamos diante de um ciclo virtuoso, no qual o Ocidente assimila a arte chinesa, que por sua vez recria e reinventa a música ocidental já neste início de século XXI. Há certa semelhança no modo como os chineses – tão distantes da tradição da música clássica europeia quanto os habitantes de outros continentes, como as Américas e a África – assimilaram essa nova música ocidental e hoje quase a dominam. 

Há, no entanto, uma diferença fundamental. A estética oriental prega, ao contrário da ocidental, a arte como prática coletiva, a dissolução consciente do eu na coletividade, herança de Confúcio. No Ocidente, a busca é oposta: a originalidade a todo custo. 

Por isso, vale a pena ouvir no CD da Orquestra de Xangai as duas peças do ótimo compositor chinês Qigang Chen, de 68 anos, nascido em Pequim, cidadão francês desde 1984 e hoje morando de novo na China. A primeira intitula-se Wu Xing, ou Os cinco elementos: água, madeira, fogo, terra e metal. Combina uma escrita moderna no sentido ocidental com uma estética oriental, como explicou o maestro em entrevista recente. “Acreditamos que tudo é cíclico: a água faz madeira na vida, a madeira faz fogo na vida, o fogo faz a terra na vida, a terra faz o metal na vida, o metal faz a água na vida, e assim por diante. E o oposto também é verdadeiro: o fogo mata a madeira, a madeira mata a terra, a terra mata a água, a água mata o fogo, o fogo mata o metal, o metal mata a madeira. De certa forma, é como a vida humana: se você fizer as coisas na direção certa e tiver energia positiva, tudo estará vivo; se cultivar uma energia negativa, tudo morrerá.” 

Mais característica ainda é A alegria do sofrimento, para violino e orquestra, na qual brilha Vengerov. São dez curtos movimentos, de títulos que reproduzem a contradição inerente do título, como Desespero e Beleza solitária, Divinamente só e Alívio melancólico. Não são só os títulos que convidam à escuta. A música é de qualidade, embora não seja propriamente experimental. Por isso mesmo, casa-se à perfeição com as “modernas” (para Rachmaninov) Danças sinfônicas. A regência de Long Yu é segura, e a orquestra é de primeira linha. 

Em tempo: para conhecer de fato a música chinesa mais contemporânea, será preciso assistir ao concerto deste mês em que a Osesp vai interpretar A cor amarela – concerto para sheng e orquestra de câmara, de Huang Ruo, compositor chinês de 43 anos, radicado nos Estados Unidos. 


PARA LER
Rhapsody in Red – How Western Classical Music Became Chinese, de Sheila Melvin e Jindong Cai (Algora)
Beethoven in China, de Sheila Melvin e Jindong Cai (Penguin)
A Critical History of New Music in China, de C. Liu  (Chinese UP)

PARA OUVIR
Gateways – Orquestra Sinfônica de Xangai  

AGENDA
Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo
Marin Alsop
– regente/ Wu Wei – sheng (obras de Huang Ruo)
Dias 10, 11 e 12, Sala São Paulo