Entrevista com o pianista Nahim Marun
Novembro será um mês cheio para o pianista Nahim Marun. Primeiro, ele toca o Concerto nº 2 de Rachmaninov com a Orquestra Sinfônica da Universidade de São Paulo. Depois, com a Orquestra Experimental de Repertório, o Concerto nº 1 de Claudio Santoro, compositor ao qual dedica seu mais recente disco, gravado ao lado do barítono Paulo Szot, com quem faz recital no início de dezembro na Sala São Paulo, pela temporada da Osesp.
O repertório brasileiro tem lugar especial na trajetória de Marun, que pesquisou e interpretou autores como Villa-Lobos e Henrique Oswald, para ficarmos apenas em dois e marcantes exemplos. “Passar um período significativo fora do país me fez sentir mais brasileiro, me possibilitou refletir melhor sobre minha cultura, entender com maior clareza meu modo particular de ser, ouvir e sentir”, ele conta na entrevista à Revista CONCERTO, na qual falou sobre as peças que toca neste mês, sobre sua formação e sobre o modo como associa as trajetórias de intérprete e pesquisador.
Seu mês começa com a apresentação do Concerto nº 2 de Rachmaninov com a Osusp. Poderia falar um pouco sobre sua relação com essa peça tão icônica do repertório?
Quando criança, eu ouvia muito uma gravação desse concerto com o Sviatoslav Richter. Rachmaninov, assim como Chopin e Liszt, criou uma linguagem que se relaciona com o corpo, com as mãos do pianista. A música se molda aos gestos do intérprete de maneira muito orgânica e natural. Persigo desde sempre o gesto pianístico ideal, livre, aquele que nos possibilitaria a realização dos voos exigidos pela imaginação artística. As respostas começaram a se delinear quando tive a sorte de ser artisticamente “adotado” por uma pianista genial, a Isabel Mourão.
Como foi o trabalho com ela?
Por um lado, havia a disponibilidade e a generosidade de uma grande artista; por outro, uma grande avidez e uma enorme disposição de minha parte. As aulas eram verdadeiras imersões no universo do piano e da música. Duravam até dez horas e, em alguns momentos, se repetiam diariamente quando necessário. Iniciávamos a aula conversando sobre técnica pianística, para, em seguida, nos debruçarmos sobre os problemas específicos do repertório e, assim, empreendermos as possíveis soluções, escolhendo estudos adicionais e obras complementares. Após esse início de cunho, digamos, mais técnico, discutíamos os problemas da interpretação e do estilo. Terminávamos o dia com horas reveladoras, ouvindo, comentando e comparando interpretações de grandes artistas. Assim, dos 18 aos 24 anos, pude estudar, além do grande repertório escrito para solista, vários concertos importantes, incluindo o segundo de Rachmaninov.
Você toca ainda o Concerto nº 1 de Claudio Santoro com a Orquestra Experimental de Repertório. Santoro é um autor de facetas múltiplas. Qual é o compositor você diria que o concerto revela?
Esse concerto é uma joia da música brasileira, e não entendo a razão pela qual é tão pouco tocado. Talvez pelos poucos registros fonográficos, bem como pelo difícil acesso às partituras. Nesse concerto, percebe-se a presença estética do realismo socialista, que foi um dos pilares importantes na sintaxe composicional de Santoro. Há uma extraordinária aproximação com o público por meio de uma estilização grandiosa das linguagens populares. Na parte do piano, Santoro emprega sistematicamente as texturas em uníssono e de timbres extremos, alternando partes técnicas muito complexas com outras de grande simplicidade. Por todas essas razões, pode-se aventar um paralelo entre elementos da linguagem musical de Santoro e de Shostakovich. O maestro Jamil Maluf estudou com Santoro na Alemanha e será muito emocionante apresentar esse concerto sob sua regência. Será um concerto espetacular!
No início do ano, você gravou com o barítono Paulo Szot um disco dedicado às canções do compositor. As Canções de amor estão entre as mais conhecidas do cancioneiro brasileiro, mas Santoro manteve também nesse gênero diversidade muito grande. Como você percebe a relação dele com a canção?
Realmente, como as canções perpassam toda a sua vida criativa, encontramos um compositor experimentando várias técnicas de composição; ou seja, o Santoro dodecafônico, o tonal e o pós-tonal. As últimas obras para voz e piano são de uma modernidade impressionante e de um estilo incrivelmente original. Alguns ciclos, como Tríptico ou Quatro canções da madrugada, criam ambientes profundos e soturnos, de uma beleza melancólica digna de figurar entre os grandes lieder da história da música. Paulo foi construindo uma interpretação teatral, impactante e absolutamente genial para cada canção. No dia 3 de dezembro, faremos uma prévia com os dois ciclos das Canções de amor e as Três canções populares na primeira parte do programa do recital na Sala São Paulo. Os ciclos mais ousados e absolutamente inéditos reservamos para o lançamento oficial do álbum duplo pelo selo Sesc. Nesse álbum gravei também várias obras para piano solo, algumas mais conhecidas, como a Toccata e o Frevo, e outras nunca antes gravadas, como Estudo nº 2, Batucada e Imitando Chopin. Pretendemos criar um contraponto musical aos ciclos e aos grupos de canções. Aguardem, logo apresentaremos grandes revelações musicais santorianas!
O interesse pela música brasileira é um dos pilares de sua trajetória artística. Ele vem desde o início? Ou houve algum marco que o levou a se interessar em especial por esse repertório?
Inicialmente, eu me concentrei no repertório tradicional que, em minha opinião, é a base para tudo o que se realiza em música. O repertório legado pelos grandes mestres é indispensável para entender o mecanismo e as possibilidades técnico-musicais do piano. Depois, eu me aproximei da música contemporânea e das novas estéticas e, por fim, após minha volta dos Estados Unidos, o repertório brasileiro estabeleceu-se definitivamente em minha carreira. Passar um período significativo fora do país me fez sentir mais brasileiro, me possibilitou refletir melhor sobre minha cultura, entender com maior clareza meu modo particular de ser, ouvir e sentir. Assim, talvez por capricho do destino, logo que cheguei ao Brasil, começaram a surgir vários convites, como o de Eduardo Seinc-man para gravar um CD com suas obras para piano e em seguida o de Ricardo Kanji para a série História da Música Brasileira. Neste último, iniciei o contato com a obra de Henrique Oswald, gravando solos, duos para piano e violino e também para piano e violoncelo. Logo após, gravei com o violinista Cláudio Cruz o CD Violin Music in Brazil . Gravamos sonatas de Villa-Lobos, Miranda, Krieger e a Grande sonata para violino e piano de Oswald.
Você tem importante trabalho relacionado à obra de Oswald, tanto com o lançamento do CD com sua produção para piano solo como pela interpretação do Concerto op. 10 do compositor. O que o atraiu a ele?
Fico muito honrado em continuar o trabalho de divulgação da obra desse extraordinário compositor, propelido inicialmente pela pesquisa referencial do pianista José Eduardo Martins e logo após pelos excelentes registros do pianista Eduardo Monteiro. Acredito que muito da minha identificação com Oswald venha da aproximação com a técnica pianística francesa. Nos Estados Unidos, estudei com Grant Johannesen, que havia sido aluno dileto de um dos maiores ícones do piano francês: Robert Casadesus. Johannesen foi um apaixonado pela técnica pianística e me conduziu a uma reflexão profunda sobre o gesto musical e seus resultados sonoros. Essa reciclagem arrematou os conhecimentos muitas vezes intuitivos que me haviam sido passados por Isabel Mourão, discípula de Tagliaferro, outro grande nome da música franco-brasileira. Fechou-se, assim, um grande ciclo virtuoso em minha trajetória pianística, que anos mais tarde resultou em meu doutorado. Ainda durante meu período nos Estados Unidos, estudei toda a obra para piano de Gabriel Fauré, cuja obra integral foi registrada por Johannesen. Fauré e Oswald foram contemporâneos, e seus estilos dialogam o tempo todo, seja na sonoridade, na fantasia musical e timbrística, seja no fraseado musical ou nas escolhas harmônicas. O Concerto op.10 para piano é obra arrojada e se insere na tradição do piano virtuosístico de Scriabin e Liszt. Recentemente fiz a primeira audição dessa obra em território uruguaio acompanhado pela Orquestra Filarmônica de Montevidéu, sob regência da regente brasileira Lígia Amadio. A reação do público foi extraordinária, confirmando a grandeza de uma composição que mereceria figurar entre os grandes concertos românticos do repertório pianístico internacional.
Os trabalhos de pesquisador e intérprete se fundem em sua atuação profissional. Se considerarmos a obra de illa-Lobos, por exemplo, existe tanto o CD com canções, gravado com Claudia Riccitelli, quanto a revisão crítica feita das peças. No caso de Oswald, algo emelhante acontece. Em que medida você acha que o pesquisador informa o intérprete, e vice-versa?
Minha atividade de pesquisador está sediada na Unesp, onde atuo como professor nos cursos de graduação e pós-graduação. Não consigo dissociar minha produção cientifica da artística. São atividades complementares que dialogam dinâmica e onstantemente, uma sempre alimentando a outra. O que consigo observar é que, em meu caso, o que vem sempre antes é a performance. O trabalho interpretativo, com todas as etapas que envolvem seu processo, me leva às questões a serem desenvolvidas, escritas e pesquisadas. Foi assim com o tema do doutorado, que remeteu aos 51 exercícios de Brahms, trabalhados com Johannesen em Nova York. Também foi assim com as Canções de Villa-Lobos, que foram tema de meu pós-doutorado na Sorbonne (Paris-IV), sob a orientação de Danièle Pistone, e também com diversos artigos e capítulos de livros. Acredito que nesta área da performance, para uma pesquisa resultar em algo cientificamente relevante, o pesquisador precisa ter uma vivência profunda e cotidiana do assunto, um envolvimento “religioso” com a pesquisa e seu objeto, evocando-se aqui o sentido original da palavra de uma (re)ligação constante.
Da mesma forma, como a atividade como professor interfere no intérprete?
As aulas de instrumento são tradicionalmente realizadas por meio de atendimentos individuais, o que cria um maior vínculo emocional entre o professor e o aluno. Existe uma troca de experiências muito prolífica para ambos os lados, pois a sala de aula torna-se um laboratório de emoções humanas. A universidade permite um fluxo constante de estudantes com personalidades e valores socioculturais muito diversos, com maneiras distintas de sentir, ouvir e agir. O convívio com esses jovens estudantes me estimula a refletir constantemente sobre a realidade brasileira e a pensar em que medida eu posso colaborar para construir um país melhor. Assim sendo, saliento que neste momento histórico que vivemos é importantíssimo defendermos a manutenção da universidade pública e gratuita. Apenas por esse tipo de instituição podemos cultivar os inúmeros talentos que, como sabemos, vêm de todas as camadas sociais.
Você poderia falar de seus novos planos e projetos?
Estarei em janeiro de 2020 na Oficina de Música de Curitiba, quando darei concertos e masterclasses para os alunos inscritos nesse importante festival. Farei vários concertos com Paulo Szot para divulgar esse novo trabalho com a obra de Santoro. Tenho agendados recitais de piano e palestras sobre música brasileira em Londres e nos Estados Unidos e alguns convites para me apresentar com orquestras. Pretendo iniciar os trâmites para defender minha livre-docência na universidade, continuando, assim, minha carreira acadêmica. No campo humano, meus planos incluem sonhar com um país mais justo, mais clemente e plural. Almejo uma nação que estimule e celebre a criação artística e que tenha profunda reverência pela educação e pelo conhecimento científico e humanístico.
Obrigado pela entrevista.
AGENDA
Orquestra Sinfônica da USP
Catherine Larsen Maguire – regente / Nahim Marun – piano
Dia 2, Sala São Paulo
Orquestra Experimental de Repertório
Jamil Maluf – regente / Nahim Marun – piano
Dia 15, Theatro Municipal de São Paulo
Nahim Marun – piano / Paulo Szot – barítono
Dia 3/12, Sala São Paulo