Editora da Osesp lança edição das obras para flauta de Camargo Guarnieri preparadas por Aldo Barbieri
Sempre pensei que a família de Camargo Guarnieri tivesse se mudado de Tietê, no interior do estado, para a capital São Paulo com a meta de permitir ao talentoso adolescente Mozart aperfeiçoar-se na música. Foi uma mudança sem dúvida radical para os Guarnieri. Mas a razão é mais prosaica. E está no documentário Guarnieri 100 anos, realizado pela TV Cultura em 2006, ano de seu centenário de nascimento. A história, contada por ele mesmo, é a seguinte: aos 11 anos, em Tietê, onde nasceu, já aprendiz de barbeiro e estudante de piano, ele foi capturado pela beleza de uma garota vizinha e decidiu escrever uma música para ela. Uma valsinha, que foi impressa em São Paulo com o título Sonho de artista e dedicada a seu professor de piano. Quando mostrou ao mestre sua estreia como compositor, este atirou-lhe na cara a partitura, gritando: “Por que pôs meu nome nesta porcaria?”. “Meu pai siciliano”, conta Guarnieri, “pegou o professor pelo pescoço e o botou para fora. Esta foi a razão que nos levou a mudar imediatamente para São Paulo”.
Disponível no YouTube, o documentário nos ajuda a entender melhor um compositor cuja simplicidade contrasta com a qualidade de uma obra que cada vez mais se agiganta quando confrontada com seus contemporâneos. Ele teria sido um segundo Villa-Lobos, não fosse seu temperamento e sua falta de formação educacional mais sólida (só cursou até o segundo ano primário).
Teve duas chances internacionais, como antes dele também Villa-Lobos. É certo que este último foi mais aquinhoado, pois se mudou para Paris com farta mesada dos Guinle, que lhe emprestaram o apartamento na cidade, pagaram seus concertos e a edição de suas obras na década de 1920. Guarnieri também passou 16 meses em Paris, entre 1938 e 1939, com bolsa magra e sem coragem nem sequer para dizer a seu mestre francês, Charles Koechlin, que já tinha um volume considerável de composições (levou alguns meses para mostrar-lhe suas obras). Três anos depois, outra bolsa, de seis meses nos Estados Unidos, com direito a reger a então reputadíssima Sinfônica de Boston em sua Abertura concertante – gesto de generosidade do mítico maestro russo Sergei Koussevitzky. Quando deveria deslanchar, retornou para São Paulo. Depois disso, apenas algumas esticadas pelo cone sul, Argentina incluída.
O extremo rigor com a forma, a exigência de pleno conhecimento de contraponto, fuga e análise em suas aulas no estúdio da rua Pamplona, no Jardim Paulista, em São Paulo, fizeram dele o parteiro de alguns dos maiores compositores de gerações seguintes: Almeida Prado, Marlos Nobre, Lina Pires de Campos, Edmundo Villani-Côrtes, entre outros. E Osvaldo Lacerda, discípulo dileto, que ficou encarregado, após a morte de Guarnieri, da revisão de suas obras.
Tenho certeza de que, uma vez disponível internacionalmente em edições revisadas, as partituras de suas obras não esquentarão estantes mundo afora. Por isso, o projeto do flautista Aldo Barbieri é elogiável. Ele fez a revisão das doze obras de Guarnieri para seu instrumento. Projeto incentivado pelo Proac, está sendo lançado pela Editora da Osesp (aliás, responsável por magníficos trabalhos nesta área nos últimos vinte anos).
Barbieri se entusiasma ao falar sobre o domínio técnico do compositor: “Guarnieri sabia explorar magistralmente os recursos da flauta, que ele conhecia bem, seu pai era flautista. Há dificuldades interpretativas, mas não passagens impraticáveis – aquelas que nós músicos chamamos de ‘fora dos dedos’, como dedilhados intrincados. E mesmo passagens muito trabalhosas, como saltos através de quebras de registro, são construídas de maneira exequível. Ele utiliza toda a extensão do instrumento. E quando insere a nota si grave, sempre apresenta alternativa, pois nem todo instrumento atinge essa nota. Há certo modelo melódico recorrente que ele emprega eventualmente, mas com alguma frequência nas obras para flauta, que chamo de progressão divergente. Trata-se de uma sequência de notas cujos intervalos vão se alargando de forma progressiva enquanto se alternam os sentidos ascendente e descendente: por exemplo; segunda maior ascendente, terça menor descendente, terça maior ascendente, quarta descendente etc.”.
O álbum de partituras compreende duas obras para flauta e orquestra (uma de cordas e uma de câmera), uma para flauta e piano, uma para piccolo e piano, um ciclo de três peças e duas peças avulsas para flauta, voz solista e instrumentos variados, uma para soprano, flauta, coro e violoncelo, uma para flauta e canto, uma para flauta, piano e canto, três para flauta solo e uma para duas flautas.
As partituras são publicadas em dois formatos: de estudo e de performance. O primeiro, em formato de bolso, não tem as partes individuais, diz Barbieri, “para dificultar o uso em execução”. O formato de performance é feito especificamente para ser usado em ensaio e concerto, em tamanho grande, com a partitura e as partes separadas de cada executante. “Isso visa a dificultar a execução sem pagamento de direitos autorais”, conclui. Não deixa de ser difícil brecar reprodução de cópias, é quase como enxugar gelo, um processo fadado ao insucesso, que aconteceu primeiro com as partituras impressas e nos últimos anos repetiu-se com o formato do CD físico. Serão cinquenta conjuntos completos de volumes, no formato de estudo, para serem distribuídos gratuitamente para bibliotecas e escolas de música. Segundo Barbieri, “a distribuição da tiragem comercial, em ambos os formatos, será feita pela venda com impressão sob demanda e eletrônica, com o pagamento dos direitos autorais”.