Acervo CONCERTO: Dietrich Fischer-Dieskau

por Redação CONCERTO 17/03/2020

Texto de Leonardo Martinelli na Revista CONCERTO de julho de 2012 

É comum, no cinema e na televisão, assimilarmos como realidade aquilo que é mostrado na tela e, dessa forma, associarmos ao ator o caráter e o temperamento do personagem interpretado. Algo parecido ocorre com a imagem que o barítono alemão Dietrich Fischer-Dieskau nos lega neste momento em que ainda experimentamos o luto de sua morte. Uma das mais importantes vozes do século XX, Fischer-Dieskau ganhou notabilidade mundial com interpretações das canções de Schubert. Escritas para a delicada formação de piano e voz, nestas canções (ou lieder) Schubert se debruça sobre sentimentos nobres e amores intensos, expressos de modo discreto e melancólico. Não seriam estas também as características da própria vida reservada a seu intérprete maior?

Dietrich Fischer-Dieskau [Reprodução]
Dietrich Fischer-Dieskau [Reprodução]

Winterreise*

Nascido em Berlim, em 28 de maio de 1925, o cantor foi batizado como Albert Dietrich Fischer. Posteriormente, seu pai conseguiu adicionar o Dieskau, sobrenome nobre que constava na genealogia da família de sua mãe. A família era de classe média-alta e vivia em um ambiente ricamente cultural – seu pai era diretor de escola. Ainda muito cedo, o jovem entrou em contato com a música e aos 16 anos já realizava estudos formais de canto. Porém, em 1943, quando havia recém completado o ensino médio e cursava o primeiro semestre no Conservatório de Berlim, a realidade alemã alterou seus planos.

No auge da Segunda Guerra Mundial e da sandice nazista, Fischer-Dieskau fora forçado a ingressar no exército, onde foi alocado em um dos batalhões de cavalaria que integrou a Frente Oriental das tropas de Hitler. Foi durante sua estada no front – ocasião em que manteve um diário pessoal – que soube da morte de seu irmão: com deficiência física e intelectual, ele fora recolhido pelos nazistas para um “hospital”, no qual, junto com centenas de outros, acabou assassinado.

O cantor foi feito prisioneiro de guerra poucos dias antes da capitulação do Terceiro Reich. Foi quando iniciou sua carreira, de forma lúgubre, pois realizava recitais e apresentações em diversos campos e hospitais de soldados alemães cativos. Sua arte agradou não apenas a seus combalidos e encarcerados compatriotas, mas, também, às autoridades norte-americanas que gerenciavam essas instalações. Ironicamente, por conta de seu sucesso nos campos, Fischer-Dieskau foi um dos últimos alemães a ser repatriado, apenas em junho de 1947.

Quando voltou para Berlim, já com 22 anos de idade, o cantor se rematriculou no conservatório, mas a conclusão de seus estudos formais foi novamente adiada; dessa vez, contudo, o destino lhe sorriria generosamente. Sem qualquer ensaio, Fischer-Dieskau solou o Réquiem alemão de Brahms em uma apresentação na pequena cidade de Badenweiler. A brilhante interpretação relatada pela crônica da época e o heroísmo das circunstâncias repercutiram em toda a Alemanha, e logo o cantor viu-se, enfim, frequentando os principais palcos musicais.

Die schöne Müllerin

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, tanto os aliados como os alemães tinham uma difícil tarefa: reestabelecer uma nova imagem para o país. Nesse processo, a arte e os artistas desempenharam importante papel, com especial destaque para os músicos clássicos. Entre eles, Fischer-Dieskau alcançou alta excelência e serviu de modelo, pois, apesar de ter integrado as tropas nazistas, sua biografia deixava claro que não fora por livre-arbítrio.

Logo o artista começou a firmar parcerias musicais com importantes músicos de outras nações. Simbolicamente, essa arte da reconciliação que Fischer-Dieskau inspirava teve seu ponto culminante na estreia do Réquiem de guerra do inglês Benjamim Britten, em 1962.

Porém, foi com o lied que Fischer-Dieskau viria a se tornar uma espécie de embaixador da música alemã. A partir da inspirada parceria com o pianista inglês Gerald Moore, o cantor aproveitou uma oportunidade única com a ascensão da indústria fonográfica clássica, convencendo o mundo do apelo universal dessa forma de expressão poético-musical tipicamente germânica. Desse imenso repertório, Fischer-Dieskau concentrou suas forças nas centenas de canções de Schubert, gravando-as na íntegra, e em alguns ciclos, que registrou várias vezes. Seus discos sempre obtiveram expressivos resultados de venda.

Apesar de ter sua imagem fortemente vinculada ao lied, o barítono teve também uma importante carreira nos palcos de ópera. Entre os diversos papéis que encarnou, foram especialmente aclamados seu Hans Sachs de Os mestres cantores de Nuremberg, de Wagner, e o papel-título de Wozzeck, a ópera moderna de Alban Berg.

Aliás, vários foram os compositores modernos que escreveram especialmente para a voz de Fischer-Dieskau. Além de Britten, o cantor estreou também obras de Hans Werner Henze, Gottfried von Einem, Witold Lutoslawski e Aribert Reimann, cujo Lear foi a última gravação em ópera feita pelo cantor.

Schwanengesang

Apesar de mundialmente aclamado, Fischer-Dieskau não chegou a ser unanimidade, risco inevitável para um artista que muito cedo foi tomado como referência mundial. A mais famosa crítica foi realizada pelo filósofo francês Roland Barthes no artigo O grão da voz, que relatava uma suposta falta de naturalidade na dicção do cantor. A polêmica logo estourou, pois, se uma das qualidades de Fischer-Dieskau era justamente sua impecável dicção no alemão, não estaria Barthes exigindo do cantor algo essencialmente antimusical? Ao mesmo tempo, ficou claro que o domínio absoluto do idioma natal não era comparável a outros importantes idiomas do universo lírico, como o italiano e o francês.

Seja como for, o exímio artista nos deixou um enorme legado, graciosamente registrado e acessível nas mídias modernas. Em 1978, aos 53 anos, realizou sua despedida dos palcos de ópera e, em um recital de Ano-Novo em 1993, fez sua última apresentação de câmara.

*Os subtítulos deste texto são títulos de ciclos de canções de Schubert gravados com sucesso pelo cantor (Viagem de inverno, A bela moleira e O canto do cisne, respectivamente).

 

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