Texto de Lauro Machado Coelho na Revista CONCERTO de abril de 1997
Em 6 de janeiro de 1873, ao sair da igreja de San Fedele, em Milão, onde assistira à missa pelo filho primogênito recentemente falecido, o escritor Alessandro Manzoni foi fulminado por um ataque cardíaco. Giuseppe Verdi tinha verdadeira veneração pelo autor de I Promessi Sposi, no qual identificava a síntese das virtudes morais e intelectuais do homem italiano. Em homenagem a “essa mente altíssima que se apaga”, ele compôs a sua Messa da Requiem, estreada em 22 de maio do ano seguinte, na catedral de São Marcos, em Milão, tendo como solistas Teresa Stolz e Maria Waldmann, Giuseppe Capponi e Ormondo Maini.
Nela vamos encontrar, completamente reformulado, o Libera me que ele destinara à Messa per Rossini, obra coletiva que em 1869 propusera a vários colegas compositores escrever, em homenagem ao autor do Barbiere, morto no ano anterior. Tendo abortado esse projeto, ele retirou a partitura, que estava em mãos do editor Ricordi, e reutilizou-a na missa para Manzoni.
Nada há de litúrgico nessa peça sacra, a qual o maestro Hans von Bülow chamou de “uma ópera vestida com roupagens eclesiásticas”. Assim como os réquiens de Mozart, Berlioz ou Dvorák, o de Verdi tem um caráter declaradamente teatral. Ainda que, no final, venha uma nota de apaziguamento diante do inevitável, o que ele reflete é o terror do Homem diante do mistério da morte e do desconhecido.
A impressão mais forte que essa música poderosa nos deixa não é a do recolhimento do Agnus Dei nem a da resignação do Libera me, e sim a da furiosa tempestade desencadeada pelos metais e percussões no Dies irae, que Massimo Mila chamou de “o pesadelo michelangelesco do Juízo Final”. Essa página tremenda, em que Mila vê “o espetáculo dos homens erguendo o punho contra o céu escuro, carregado de ameaças”, traduz muito bem a revolta do agnóstico diante do absurdo fundamental da condição humana. E faz culminar todo um processo de reflexão sobre a velhice e a morte que Verdi — com 61 anos ao compor o Requiem — vinha conduzindo, e já deixara traços marcantes em páginas como o “Morir, tremenda cosa”, da Forza del Destino, ou o monólogo de Felipe II no Don Carlo (não é por acaso, aliás, que a melodia da Lacrimosa saiu de um dueto pertencente à versão de 1867 dessa ópera, e posteriormente cortado).
Fruto da fase de recolhimento de dezessete anos (1870-1887) que se segue à estréia da Aida, a Messa da Requiem faz parte de um processo de balanço e síntese de sua vida e arte que Verdi —convencido de ter encerrado a carreira como operista — faz antes do salto finai, o extraordinário surto de criatividade tardia que produzirá Otelo e Falstaff. “É uma missa não para os mortos, mas para os vivos”, diz seu biógrafo Charles Osborne: “A intensidade da compaixão, em sua visão trágica da condição humana, tem uma estatura shakespeareana. E se essa é uma música mais apropriada para a sala de concertos do que para a igreja, tanto pior para a igreja.”