Acervo CONCERTO: Ópera ‘Eugene Oneguin’, de Tchaikovsky

por Redação CONCERTO 26/11/2019

Texto de João Luiz Sampaio na Revista CONCERTO de maio de 2015

Foi em uma carta de maio de 1877 enviada a seu irmão Modest que Tchaikovsky comentou pela primeira vez o impacto provocado pela leitura de Eugene Oneguin, de Aleksander Pushkin, e a ideia de transformar o texto em uma ópera. “Não tens ideias de quanto estou apaixonado pelo assunto”, escreve ele. “Que riqueza de poesia existe em Oneguin! Não ignoro seus defeitos: sei muito bem que abre pouco espaço à música e que será pobre em efeitos cênicos; mas a riqueza da poesia, a humanidade e a simplicidade do assunto expresso nos versos inspirados de Pushkin compensam a falta de ação.” Àquela altura, Tchaikovsky já era um autor respeitado, tendo estreado três de suas seis sinfonias, além do primeiro concerto para piano e do balé O lago dos cisnes. Com Oneguin, no entanto, se preparava para escrever sua primeira obra-prima.

Fazer relações entre vida e obra de um compositor é tão irresistível quanto perigoso. Mas, no caso de Eugene Oneguin, foi o próprio Tchaikovsky que, em sua correspondência, estabeleceu paralelos entre a história narrada e sua biografia. “Procurei nela um drama íntimo forte, baseado em conflitos e situações que eu mesmo vivi e que, por isso, foram capazes de me perturbar. Por essa razão, a ópera saiu sozinha de dentro de mim: não há nela nada de consciente ou de deliberado, nenhum quebra-cabeças”, escreveu a seu aluno Serguei Taneiev. “Num nível muito íntimo, a ópera constitui uma tentativa do compositor de exorcizar suas angústias e suas frustrações”, reforça o crítico Lauro Machado Coelho.

 

A obra foi escrita em um dos momentos mais atribulados da vida de Tchaikovsky. As suspeitas a respeito de sua homossexualidade o levaram a tentar um casamento com a soprano belga Désirée Artôt. Mas o plano falhou, pois, em uma trama digna de libreto de ópera, um colega do conservatório de Tchaikovsky, preocupado com as consequências que um casamento poderia ter na carreira do compositor, procurou a mãe da moça para que juntos pusessem um fim ao relacionamento. Todo o episódio o deixou profundamente abalado, crente de que o casamento e as alegrias a ele relacionadas jamais fariam parte de sua vida. Pouco depois, no entanto, enquanto já trabalhava no primeiro ato de Oneguin, Tchaikovsky sugeriu a uma aluna, Antonina Ivanova, um casamento de fachada. Ela aceitou, mas, cinco dias depois da cerimônia, o compositor escreveu ao irmão a respeito da repulsa que a esposa lhe provocava. “Não posso mais viver com ela”, anotou em seu diário, dias antes de tentar o suicídio entrando nas águas geladas do rio Moskvá.

Foi nesse estado de espírito, portanto, que Tchaikovsky terminou a composição da ópera. E, por conta disso, não é difícil encontrar paralelos entre o momento do compositor e a história da ópera. No amor não correspondido de Tatiana por Oneguin, por exemplo, o compositor teria encontrado eco para a impossibilidade que sentia de vivenciar suas verdadeiras paixões. Da mesma forma que Oneguin, o próprio Tchaikovsky sentia-se à margem de uma sociedade puritana e hipócrita, incapaz de compreendê-lo e aceitá-lo. A jornada dos personagens é aquela que leva invariavelmente à solidão e, em meio a esse mar de impossibilidades, a vida pouco mais é do que “uma eterna viagem para dentro da noite”, como escreveria ele em uma carta.

Tchaikovsky nos conduz nessa viagem buscando um novo tipo de espetáculo. Em sua correspondência, não chama Eugene Onegin de ópera, mas, sim, de “cenas líricas” – e na escolha da nomenclatura está evidenciado o desejo de se distanciar das formas tradicionais. É por conta disso que, em Oneguin, a estrutura de números (recitativos, árias, duetos) aparece com nova roupagem. A influência do sinfonismo germânico, apreendido de Richard Wagner, leva à criação de um discurso musical menos entrecortado e mais fluente. E, com isso, a ópera ganha em força teatral, permitindo a Tchaikovsky mergulhar profundamente naquilo que lhe interessa: a investigação das personagens e suas motivações, fazendo com que o heroísmo épico dê lugar ao herói intimista, que sofre em seu contato com a realidade cotidiana, o que leva a ópera a ser, essencialmente, “um drama de sentimentos”, como escrevem Carolyn Abbate e Roger Parker em Uma história da ópera.

Cena do duelo entre Lensky e Oneguin em pintura de Ilya Repin [Reprodução]
Cena do duelo entre Lensky e Oneguin em pintura de Ilya Repin [Reprodução]

 

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