Acervo CONCERTO: A ‘Sinfonia fantástica’, de Hector Berlioz

por Redação CONCERTO 22/08/2019

Texto de Lauro Machado Coelho na Revista CONCERTO de abril de 2009

Nenhuma primeira sinfonia é mais surpreendente do que a Fantástica, de Hector Berlioz. A Titã, de Mahler, as primeiras sinfonias de Brahms e de Sibelius são obras poderosas e originais. A primeira de Shostakóvitch é um fenômeno, por ter sido escrita por um rapaz de 19 anos que estava saindo do Conservatório. Mas a Fantástica é única, pelo efeito que teve sobre a história da música. Composta em 1830, três anos apenas após a morte de Beethoven, por um jovem de 26 anos, ela literalmente virou a mesa: é a primeira sinfonia cíclica — unificada pelo tema da “ideia fixa”, que se repete de um movimento para o outro — e se organiza como uma sequência de poemas sinfônicos, servindo de modelo, no futuro, para a Sinfonia Fausto, de Liszt, um dos grandes amigos de Berlioz. E, entre outras coisas, apresenta, no clima de pesadelo de seus últimos movimentos, um modelo para o tipo de deformação caricatural que será marca registrada do estilo de Mahler. Nunca uma sinfonia mereceu tanto o nome que tem!

Em 11 de setembro de 1827, estreou no Théâtre Odéon, de Paris, o Hamlet de Shakespeare montado pela companhia de Charles Kemble, que visitava a França. E Berlioz apaixonou-se perdidamente pela linda atriz irlandesa Harriet Smithson, que fazia o papel de Ofélia. Tentou aproximar-se dela, declarar seu amor, mas era um desconhecido, e foi rejeitado. Exorcizou a paixão frustrada na história do artista que, obcecado por uma mulher, mata-a em meio a um delírio de ópio, é condenado à morte por isso e é arrastado para o inferno num Sabbat de feiticeiras — exatamente o programa que está por trás dos movimentos da Sinfonia Fantástica.

Dois anos mais tarde, Berlioz acrescentou a ela uma continuação — o melodrama Lélio ou O retorno à vida, para narrador, piano, coro e orquestra — e deu a essas duas obras o título conjunto de Episódios da vida de um artista. A tarde de 9 de dezembro de 1832, em que elas foram apresentadas uma após a outra, é um divisor de águas na vida de Berlioz, pois na plateia estava miss Smithson que, estarrecida, deu-se conta de que era a inspiradora dessas duas obras — e, aí sim, aceitou ser apresentada a Hector. Em 3 de outubro de 1833, miss Smithson tornou-se madame Berlioz, dando início a uma das mais belas e mais tristes histórias de amor do Romantismo.

Lélio, infelizmente, nunca teve a fama da Fantástica — o que é injusto, porque essa obra, que não pertence especificamente a gênero algum, é de intensa originalidade (não fosse Berlioz o mestre em tratar os gêneros com total liberdade, combinando-os e reinventando-os). É, portanto, uma excelente notícia saber que teremos a oportunidade de ouvi-las juntas, este ano, e de poder apreciar o efeito complementar que elas produzem, como uma das mais curiosas obras de arte confessionais produzidas pelo século XIX. 

Manuscrito da Sinfonia Fantástica, de Hector Berlioz [Reprodução]
Manuscrito da Sinfonia Fantástica, de Hector Berlioz [Reprodução]

 

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