Texto de Lauro Machado Coelho na Revista CONCERTO de março de 1997
Em 1793, um professor da Universidade de Bonn contava a sua amiga, a viúva de Friedrich Schiller, que entre seus alunos havia um jovem altivo e ambicioso, de 23 anos, que falava em “musicar verso a verso” um dos poemas mais famosos do marido dela: An die Freude (À Alegria). O que viria, 31 anos depois, a eclodir na Nona Sinfonia — em que o poema de Schiller é entoado por solistas e coro no movimento final — germinou lentamente no espírito de Ludwig van Beethoven.
Encontramos provas disso, ao longo de sua vida, em esboços, projetos não-executados — o de terminar a Pastoral com um “cântico religioso”, por exemplo — ou em referências nos Cadernos de Conversação, esses estranhos registros de diálogo em que temos apenas o que os visitantes diziam ao compositor, àquela altura já inteiramente surdo. Há também, em algumas de suas obras, nítidos sinais de que Beethoven seguia o caminho rumo à Nona.
Uma delas é a Fantasia-Coral com piano e orquestra op. 80, de 1808; a melodia do piano, que se baseia na de um lied de 1795, celebrando o “amor compartilhado”, já é um rascunho do futuro “tema da alegria”. A outra é o final do Fidelio: esse grandioso hino à liberdade e à solidariedade tem torneados melódicos e soluções harmônicas que o fazem gravitar no universo sonoro da Sinfonia nº 9.
Os primeiros esboços são de 1817, três anos após a Sinfonia n° 8. A composição, iniciada de fato no verão de 1822, estendeu-se até fevereiro de 1823, pouco depois do término da Missa Solemnis, cujo finale se aparenta visivelmente ao último movimento da Nona. Beethoven fez questão de reger, em 7 de maio de 1824, a estreia da Sinfonia nº 9 em ré menor op. 125, dedicada a Frederico Guilherme III da Prússia. A surdez absoluta, porém, obrigou o spalla a secundá-lo discretamente, para que a orquestra não se perdesse. Apesar das reações da crítica conservadora, que se espantou com a forma pouco comum da obra, ela fez sucesso desde o início E em breve transformou-se numa das peças mais amadas pelos músicos e o público do mundo inteiro.
A Nona de Beethoven é um divisor de águas na história da sinfonia. Sua duração (1h10) não tem precedentes na época: só o último movimento é da extensão de toda a Haffner, de Mozart. Ela abre caminho para a Nona de Schubert e as imponentes arquiteturas sonoras de Bruckner, Mahler e Richard Strauss. Além disso, ela faz saltar a barreira dos gêneros: essa sinfonia, que termina como um oratório é a mãe da Lobgesang, de Mendelssohn, da Sinfonia Dante, de Liszt, da Sinfonia dos mil, de Mahler.
Mais do que isso: esta síntese da arte musical beethoveniana é também a súmula dos valores em que ele acreditava, e que celebrou em toda a sua vida. Não poderia ter sido outra a peça escolhida para comemorar, num concerto em praça pública, a derrubada do muro de Berlim, e o momento em qu os homens, estendendo-se os braços, podiam proclamar: "Seid umschlungen Millionen" (Abraçai-vos umas às outras, multidões).
É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.
Comentários
Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.