Texto de Camila Fresca na Revista CONCERTO de agosto de 2015
Dmitri Shostakovich é um dos pilares musicais do século XX. Dono de uma trajetória única e turbulenta, foi ao mesmo tempo combatido e homenageado pelo regime soviético, vivenciando tanto a vanguarda artística dos primeiros tempos pós-revolução russa quanto as perseguições stalinistas. Criança prodígio, aos 20 anos de idade já possuía reconhecimento internacional. Sua prolífica obra – que podia transmitir sarcasmo, ironia e a mais profunda melancolia – é o retrato de uma época e da personalidade de seu autor.
Shostakovich nasceu em 26 de setembro de 1906, em São Petersburgo, cidade que em 1914 passou a se chamar Petrogrado e, em 1924, Leningrado. Em 1919, o jovem Mitia, que tinha se iniciado ao piano ainda na infância, com a mãe, entrou para o conservatório da cidade. Glazunov, que era diretor da instituição, tornou-se seu professor de composição – Shostakovich guardaria para sempre boas lembranças do mestre. Com a morte de seu pai, engenheiro, em 1922, a família ficou em situação de miséria. Mas Shostakovich, que trabalhava desde menino, logo se destacou como compositor: após terminar os estudos de forma brilhante, ele alcançou fama com sua Sinfonia nº 1 (1925). Seu projeto era compor 24 sinfonias; dessas, 15 se materializaram, cada uma com uma história particular.
Em 1928, Shostakovich concluiu sua primeira ópera, O nariz, inspirada em conto de mesmo nome escrito por Gogol; quatro anos mais tarde, escreveu Lady Macbeth do distrito de Mzensk, a partir de texto de Nikolai Leskov. Apesar do sucesso imediato – ou talvez devido a ele –, Shostakovich começou a ter problemas com a burocracia soviética. O estilo ácido de Lady Macbeth, com cenas de sexo e violência, teria irritado Stalin, que assistira à obra dois anos após sua estreia. Shostakovich foi atacado na imprensa soviética, recebeu a pecha de “inimigo do povo” e, temendo a prisão, cancelou a estreia de sua Sinfonia nº 4 (1936), obra igualmente arrojada.
No ano seguinte, sua Sinfonia nº 5 levou o subtítulo “Um artista soviético respondendo a uma crítica justa”. Era uma tentativa de “fazer as pazes” com o regime. E funcionou: ele foi homenageado pela obra. Shostakovich acabaria por fazer uma versão “light” de Lady Macbeth, intitulada Katarina Ismailovna. Para alguns críticos, sua produção musical teria mudado radicalmente a partir de então. Outros, no entanto, notam que mesmo a quinta sinfonia é mais engenhosa do que se costuma acreditar, já que conseguiu satisfazer tanto o gosto mais conservador dos censores do partido quanto os que aguardavam algo na linha de sua produção anterior. Em 1938, ele compôs o primeiro de seus 15 quartetos de cordas.
Durante a Segunda Guerra, Shostakovich viveu o início do bloqueio de Leningrado, o que o inspirou a compor sua sétima sinfonia (1941), justamente chamada de “Leningrado” e que logo se tornou um símbolo da resistência da União Soviética frente à invasão alemã. Impressionados com o caráter épico e heroico, Toscanini, Koussevitzky e Stokowski disputaram a estreia da obra no Ocidente. A partitura microfilmada atravessou as frentes de combate e chegou a Nova York, onde Toscanini a tocou em julho de 1942. A essa altura, Shostakovich era conhecido no mundo todo e foi capa da revista Time.
Apesar do prestígio de que gozava como compositor e do aparente alinhamento com o regime, Shostakovich voltou a ser perseguido como consequência dos ditames ideológicos dos dirigentes do país. Em 1948, o Relatório Jdanov, emitido pelo Comitê Central do Partido Comunista, acusava Shostakovich, Prokofiev e outros compositores proeminentes de “perversões formalistas”. Aparentemente aceitando mais uma vez a crítica, por algum tempo Shostakovich escreveu obras que glorificavam a vida soviética e sua história. Com a morte de Stalin, em 1953, a repressão artística diminuiu, mas Shostakovich voltou a ter problemas com o regime em 1962, por causa de sua Sinfonia nº 13, que se apoiava no grande poema Baby Yar, de Evgeni Evtuchenko. O trabalho provocou controvérsia, sobretudo por causa do assunto de seu primeiro movimento: a opressão russa aos judeus.
Em 1966, Shostakovich escreveu seu segundo concerto para violoncelo, obra-prima ainda mais admirada que a primeira do gênero para o instrumento. Nesse mesmo ano, sofreu um ataque cardíaco e foi diagnosticado com um problema grave no coração. Ele continuou a compor, porém com menor intensidade, e suas obras trazem cada vez mais o tema da morte. Sua Décima quarta sinfonia (1969), uma coleção de canções sobre textos de Lorca, Apollinaire, Küchelbecker e Rilke, é um trabalho obcecado pela morte, de considerável dissonância e que mostra pouca preocupação com o realismo socialista ainda exigido pelo Estado. Em setembro de 1971, ano em que escreveu sua última sinfonia, o compositor sofreu um novo ataque cardíaco. O Quarteto de cordas nº 15 foi escrito em 1974, e sua última obra, a melancólica e sombria Sonata para viola op. 147, em 1975, ano de sua morte, quando um terceiro e fatal ataque tirou sua vida.
A carreira de Shostakovich foi gloriosa, embora cheia de altos e baixos, momentos nos quais sua criação ou mesmo sua postura frente ao regime eram postos em questão. Ele colecionou tanto honrarias oficiais quanto inclusões de seu nome em index nada lisonjeiros. Embora tendo vivido perseguições e dissabores de uma época difícil, o pesquisador Philippe Olivier, na História da música ocidental, chama atenção para o fato de que Shostakovich foi igualmente um grande pessimista, obcecado pela ideia da morte. Assim, não se podem colocar todas as agruras que atormentavam o compositor apenas na conta de perseguições políticas. Ao mesmo tempo, Shostakovich teria sido um comunista sincero, ainda que tivesse divergências com a doutrina oficial. Isso explicaria por que ele nunca teria tentado emigrar, bem como o engajamento que o levou a se filiar ao Partido Comunista.
Shostakovich deixou uma obra prolífica e rica, bastante ligada ao povo soviético. Seu estilo evoluiu do humor ousado e do caráter experimental de seu primeiro período (no qual se nota influências de Prokofiev e Stravinsky), exemplificado pelas óperas O nariz e Lady Macbeth, ao fervor nacionalista e à melancolia de sua segunda fase – a das Sinfonias nº 5 e nº 7. Já a última fase é marcada pelo clima desafiador e sombrio de obras como a Sinfonia nº 14 e o Quarteto nº 15. Sua produção inclui ainda balés, sinfonias de câmara, peças para piano, concertos para violino, violoncelo e piano, dezenas de suítes e outras obras orquestrais. Na produção de câmara, sonatas, duetos, trios e um quinteto com piano. Há ainda uma expressiva produção vocal, que inclui canções e obras como cantatas e oratórios. Finalmente, não se pode esquecer de sua produção para o cinema, com mais de duas dezenas de peças. O conjunto de sua obra o consagra como um dos maiores nomes do século XX, um compositor que soube como poucos transmitir a angústia, a ironia e a turbulência de toda uma época.
Linha do tempo
1906
Nasce em São Petersburgo, no dia 26 de setembro
1919
Ingressa no Conservatório de Petrogrado, onde estuda com Glazunov
1925
Um ano antes de se formar, compõe sua Sinfonia nº 1
1928
Conclui a primeira ópera, O nariz, inspirada em conto de Gogol
1932
Sua segunda ópera, Lady Macbeth do distrito de Mzensk, desagrada Stalin
1937
Estreia sua quinta sinfonia, com a qual faz “as pazes” com o regime
1941
O bloqueio de Leningrado o inspira a compor sua sétima sinfonia, “Leningrado”
1948
O “Relatório Jdanov” acusa Shostakovich e outros compositores de “perversões formalistas”
1962
Volta a ter problemas com o regime por conta de sua Sinfonia nº 13
1966
Escreve o segundo concerto para violoncelo e sofre um primeiro ataque cardíaco
1971
Escreve sua última sinfonia; novo ataque cardíaco
1974
Despede-se da composição com a Sonata para viola op.147; morre no dia 9 de agosto