Texto de Lauro Machado Coelho na Revista CONCERTO de setembro 2009
De certa forma, Franz Schubert é um caso isolado na história da música. Foi ele o único grande compositor a praticamente nunca obter, em vida, nenhum tipo de sucesso – a não ser junto a um grupo muito restrito de admiradores: seus protetores, aos quais devemos as “schubertíadas”, saraus que o pintor Julius Schmidt celebrizou num quadro que o mostra ao piano, cercado por seus amigos. Ao morrer – em 19 de novembro de 1828, com apenas 31 anos –, Schubert ainda não tinha recebido o reconhecimento à importância de sua imensa obra. E, no entanto, dos gêneros existentes em seu tempo, o único que ele não praticou foi o concerto para solista e orquestra. Escreveu 9 sinfonias, 7 missas, 18 óperas, extensa obra de câmara e para piano, incluindo 19 quartetos de cordas e 21 sonatas. E é o autor de 603 canções, com as quais estabeleceu o modelo para o lied — a canção para voz e piano, sobre texto poético —, influenciando Schumann, Brahms, Hugo Wolf, Richard Strauss e todos os outros mestres desse gênero, germânico por excelência.
Para a obscuridade contribuiu o fato de Schubert, ou Franz Seraph Peter Schubert, ter sido praticamente o único grande compositor a não fazer carreira como instrumentista, tal qual, antes dele, Bach ao órgão, Vivaldi ao violino, Mozart e Beethoven ao piano. O quarto filho de Franz Theodor Schubert, modesto mestre-escola no subúrbio vienense de Lichtenthal, nascido em 31 de janeiro de 1797, não era um virtuose do piano nem um regente brilhante. Isso limitou a sua notoriedade em vida e fez com que relativo esquecimento caísse sobre ele, após seu desaparecimento precoce.
O interesse pela obra de Schubert só começou timidamente a despertar depois que Felix Mendelssohn regeu, em Leipzig, em 29 de março de 1839, a estreia de sua Sinfonia nº 9 – de uma amplitude de concepção que lhe valeu o nome de a “Grande”. De repente, o mundo musical alemão percebeu estar diante de uma obra genial, que andara praticamente esquecida por muito tempo: Robert Schumann encontrara por acaso a partitura em casa de Ferdinand Schubert, irmão do compositor. Ainda assim, houve setores de sua obra que precisaram de muito mais tempo para se impor. A ausência de exibicionismo virtuosístico em sua escrita para o piano, a organização complexa de suas sonatas, de extrema concentração expressiva, as exigências que elas fazem não só ao intérprete mas também ao ouvinte, não as tornavam atraentes para os pianistas. Apenas na década de 1930, artistas como Arthur Schnabel começaram a revelar a genialidade de peças como a Fantasia Wanderer, de 1822 (assim chamada porque, no segundo movimento, um adagio, ele reutiliza o tema da canção Der Wanderer/O peregrino, de 1816).
Hoje, as características que faziam com que a música para piano de Schubert fosse considerada de escrita ingrata são exatamente a prova de sua grandeza. Foi preciso que se superasse o lado mais extrovertido e, de certa maneira, mais superficial do Romantismo, para que os músicos e seu público pudessem se dar conta de como ela era rica – e atual. E artistas como Wilhelm Kempff, Ingrid Haebler, Alfred Brendel, ou Sviatoslav Richter a executaram ao vivo e gravaram, dando a plena medida de seu valor. E ainda assim, ainda assistimos hoje ao resgate de parte substancial de sua obra: a ópera, por exemplo, gênero para o qual ele era acusado de não possuir talento – ideia preconcebida que, até pouco tempo atrás, continuava a ser repetida sem que os musicólogos se dessem ao trabalho de reexaminá-la. Remontagens atuais de Alfonso und Estrella ou Fierrabras encarregam-se, lentamente, de dissipar esse preconceito.
Sempre foi prodigiosa a facilidade com que Schubert compunha. Seus amigos diziam que ele criava uma peça nova em menos tempo do que um copista levaria para passá-la a limpo. No lied estão alguns desses exemplos mais surpreendentes. O Ständchen (Serenata), de Grillparzer, uma de suas melodias mais conhecidas, foi composta em poucos minutos para o meiosoprano Josephine Fröhlich. Franz tinha apenas 18 anos, em outubro de 1815, ao compor Der Erlkönig (O rei dos elfos). É extraordinária a habilidade com que põe em música a história fantástica narrada por Goethe; e os coloridos diferentes que exige da voz do cantor para sugerir a de cada personagem. É notável a dissonância que enfatiza, de modo pungente, o terror do menino quando ele pergunta: “Meu pai, meu pai, ah!, não ouves o que o Rei dos Elfos me promete baixinho?” E é um achado de gênio o fi nal quase falado do lied, quando o narrador termina a história dizendo: “E em seus braços a criança estava... morta”, e a última palavra cai como uma bofetada entre dois acordes do piano. Das canções estróficas, em que a mesma melodia se repete a cada grupo de versos, Schubert evolui para formas livres, cada vez mais elaboradas, e com a combinação desses recursos, cria grandes ciclos de canções: A bela moleira (1823), Viagem de inverno (1827), Canto do cisne (1828) – em que ele sabe transfigurar, com a sua música, versos não exatamente geniais, como os de Wilhelm Muller. “Schubert consegue fazer a poesia cantar e a música falar”, escreveu o poeta Franz Grillparzer a respeito de suas melodias, de desarmante simplicidade.
Qual é o Schubert mais notável? O da música de câmara – a graça irresistível do Quinteto da Truta, opondo-se à violência contida do Quarteto em ré menor “A morte a donzela” e à olímpica grandeza do Octeto em fá maior –; o da magnífica Sonata em dó maior, chamada de “Grande Duo”, verdadeira sinfonia para piano, por sua extensão e pelo tratamento orquestral que ele dá ao teclado; ou o da música visionária que, em seus últimos momentos, já aponta o caminho às grandes construções sinfônicas de Bruckner? É difícil dizer. E, no entanto, foram precisos 40 anos, depois de sua morte, para que o mundo percebesse que ele tinha sido um gênio da mesma estirpe que Mozart ou Beethoven. Hoje, passados 212 anos seu nascimento, ninguém mais tem dúvidas de ele ter sido um dos maiores poetas da história da música. Mas foi preciso um longo percurso antes que o mundo se desse conta de quem realmente era aquele homenzinho rubicundo, de cabelos cacheados e óculos de fundo de garrafa.