Acervo CONCERTO: A vida de H. J. Koellreutter 

por Redação CONCERTO 02/09/2019

Texto de Camila Fresca na Revista CONCERTO de setembro de 2015

Em 1922, a Semana de Arte Moderna balançou os alicerces artísticos do Brasil. A ideia era atualizar o que se praticava aqui com o que de mais recente se fazia na Europa. No caso da música, no entanto, o que de mais moderno se ouviu foram obras de Debussy e outros franceses, além de peças de Villa-Lobos influenciadas por essa mesma estética. Acontece que Debussy havia morrido em 1918 – quando, mesmo em seu país, já era considerado “ultrapassado” pelas gerações mais jovens –, e Arnold Schönberg chocava o meio cultural pelo menos desde 1912, ano de composição de seu Pierrot lunaire. Mas os ventos da vanguarda musical europeia ainda estavam longe de soprar por aqui e era a estética nacionalista que se desenvolvia. As coisas só começariam a mudar no final da década de 1930, com a chegada ao Brasil de um personagem fundamental para a música do século XX: Hans-Joachim Koellreutter. 

Nascido em Freiburg, em 2 de setembro de 1915, Koellreutter estudou com o compositor Paul Hindemith e os regentes Kurt Thomas e Hermann Scherchen e já era conhecido na Alemanha como flautista quando decidiu mudar-se para o Brasil, em 1937, fugindo do nazismo (apesar de não ser judeu, estava noivo de uma moça judia). Estabeleceu-se no Rio de Janeiro e, em 1938, já era professor do Conservatório de Música. Com o arcabouço teórico que possuía, rapidamente passou a aglutinar jovens músicos interessados em novas técnicas e estéticas musicais, entre as quais o dodecafonismo. Num livro que é referência sobre o assunto – Música viva e H. J. Koellreutter: movimentos em direção à modernidade –, Carlos Kater afirma que Koellreutter não tinha, a priori, a intenção deliberada de difundir o dodecafonismo entre os músicos brasileiros. Isso surgiu muito mais como fruto das contingências: com sua atuação didática, ele respondeu aos desejos de renovação e conhecimento de técnicas de vanguarda que partiam dos jovens compositores brasileiros. 

Foi nesse contexto que surgiu o Música Viva, movimento de vanguarda musical liderado por Koellreutter e que atuou no Rio de Janeiro e em São Paulo a partir de 1939. O Música Viva tinha entre suas preocupações centrais a difusão da música contemporânea. Além do aspecto estritamente estético, o movimento possuía forte componente ideológico. No manifesto que o grupo lançou em 1944, afirmava-se que o “Música Viva, divulgando, por meio de concertos, irradiações, conferências e edições a criação musical hodierna de todas as tendências, em especial do continente americano, pretende mostrar que em nossa época também existe música como expressão do tempo, de um novo estado de inteligência”. Vale notar que havia uma preocupação em comunicar-se com o público: “A revolução espiritual que o mundo atualmente atravessa não deixará de influenciar a produção contemporânea. Essa transformação radical que se faz notar também nos meios sonoros é a causa da incompreensão momentânea frente à música nova”. O movimento Música Viva estendeu-se até 1950 e tornou-se uma das referências mais dinâmicas da música brasileira, publicando três manifestos, boletins e emissões radiofônicas e realizando conferências, audições públicas, entre outras iniciativas. 

Ao mesmo tempo, a corrente nacionalista seguia com força e com muitos adeptos. As consequências e os desdobramentos do Nacionalismo puderam ser sentidos ao longo de todo o século XX e, em grande parte, isso se deveu à forte escola de composição criada por Camargo Guarnieri, pela qual passaram muitos dos mais importantes músicos do período. Com intensa atividade pedagógica, Koellreutter, por sua vez, também dava aulas de composição e, ao lado de Guarnieri, foi o mais influente professor de composição do Brasil no século XX. Vários alunos de Guarnieri, aliás – como Santoro e Guerra-Peixe –, também tiveram aulas com Koellreutter. 

A partir de meados do século XX, no entanto, o Nacionalismo encontrou desafetos ferrenhos. Na verdade, existia um crescente interesse pela atualização da linguagem musical, que não era suprido em razão da falta de profissionais aptos a ensinar aos jovens compositores as técnicas mais modernas. O Nacionalismo, então, passou a ser visto como algo velho e ultrapassado e que, no entanto, ainda era a principal referência do país. A tensão dessa corrente com a vanguarda eclodiu de vez com a “Carta aberta aos músicos e críticos do Brasil”, que Camargo Guarnieri escreveu em 1950 e que os colocaram em posições opostas, embora tivessem sido amigos próximos desde a época em que Koellreutter chegara ao país. 

Paralelamente à militância pela música de vanguarda, Koellreutter seguiu tendo um intenso papel em nosso meio musical: na década de 1940, ajudou a fundar a Orquestra Sinfônica Brasileira, na qual foi primeiro flautista; participou da fundação da Escola Livre de Música de São Paulo, em 1952; e fundou a Escola de Música da Universidade Federal da Bahia, em 1954. 

Com o final da Segunda Guerra, Koellreutter voltou a viajar para a Europa e trabalhou na Alemanha a convite do Instituto Goethe, seguindo depois para a Índia, onde permaneceu de 1965 a 1969 e fundou a Escola de Música de Nova Délhi. Mais tarde, conheceu também o Japão e outros países do Oriente. O contato com a cultura oriental provocou profunda transformação no autor, que passou a relativizar a ideologia hegemônica do Ocidente e a incorporar outros elementos em sua composição, como a improvisação, o aleatório e a música microtonal, além de buscar uma compreensão holística da cultura. No Japão, ele conheceu o zen-budismo e, na Índia, o hinduísmo, que o influenciaram na criação do que dizia ser a “estética do impreciso e do paradoxal”.

Em 1971, Koellreutter retornou ao Brasil, fixando-se em São Paulo. Atuou como diretor do Conservatório Dramático e Musical de Tatuí e professor visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP. Continuou com uma agenda concorrida de alunos, o que o fazia viajar regularmente para o Rio de Janeiro. Nos últimos anos de vida, sofreu do mal de alzheimer. Morreu no dia 13 de setembro de 2005.

Koellreutter naturalizou-se brasileiro em 1948 e, apesar de suas andanças pelo mundo, deixou aqui suas mais profundas raízes. Embora flautista, regente e compositor, seu legado mais importante foi o de educador. Tinha um método próprio de ensino, que não admitia valores absolutos e partia da experiência do aluno. Em décadas de atuação, deu aula a gerações de músicos brasileiros eruditos e populares, como Tom Jobim, Caetano Veloso, Moacir Santos, Gilberto Mendes, Marlos Nobre, Tim Rescala, Gilberto Tinetti, Júlio Medaglia e Isaac Karabtchevsky. Seu acervo está preservado na Fundação Koellreutter, na Universidade Federal de São João del Rei.

Hans-Joachim Koellreutter [Reprodução]
Hans-Joachim Koellreutter [Reprodução]

Linha do tempo

1915
Nasce em Freiburg, em 2 de setembro

1937
Fugindo do nazismo, estabelece-se no Brasil

1938
Passa a dar aulas no Conservatório de Música do Rio de Janeiro

1939
Funda o Movimento Música Viva, que atua em São Paulo e Rio de Janeiro até 1950

1940
Ajuda a fundar a Orquestra Sinfônica Brasileira, sendo seu primeiro flautista 

1950
Camargo Guarnieri publica a “Carta aberta aos Músicos e Críticos do Brasil”, condenando o dodecafonismo e referindo-se veladamente à Koellreutter

1952
Participa da fundação da Escola Livre de Música de São Paulo

1954
Funda a Escola de Música da Universidade Federal da Bahia 

1965-1969
A convite do Instituto Goethe, vive na Índia, onde funda uma escola de música

1975
Retorna ao Brasil, fixando-se em São Paulo

2005
Sofrendo do Mal de Alzheimer, falece em decorrência de uma pneumonia

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