Cantora norte-americana fala sobre interpretar pela primeira vez o papel de Bess em uma encenação da ópera Porgy and Bess, de Gerswhin, em montagem em cartaz no Theatro Municipal de São Paulo
Criticar Porgy and Bess por ser uma ópera sobre negros escrita por um compositor branco é “hipocrisia”. Se demorou para interpretar Bess na obra de Gershwin é porque “as pessoas têm um problema com uma Bess acima do peso”. O problema que certos ciclos culturais têm com a ópera é simplesmente “preguiça intelectual”. A grande questão do gênero, hoje, passa “pela falta de coragem daqueles que administram os teatros”.
A conversa com a soprano norte-americana Latonia Moore é aberta e franca. Já tendo passado pelos principais palcos de ópera mundo afora – já foi Aida e Cio-Cio San no Metropolitan de Nova York, na Semperoper de Dresden e no Covent Garden de Londres –, ela está em São Paulo para participar da nova produção de Porgy and Bess, de Gershwin – após o primeiro final de semana de récitas, ela retorna ao palco no sábado, dia 27.
“É muito especial estar aqui, e fazer aqui, a minha primeira Bess em uma produção encenada”, ela diz à CONCERTO. Moore já cantou o papel em versão de concerto (com a Filarmônica de Berlim e Simon Rattle, por sinal), mas no palco havia interpretado apenas Serena, vizinha de Porgy, que canta uma das passagens mais famosas da obra, My Man’s Gone Now, após seu marido, Jake, ser morto.
Com a mudança de papel, ela perdeu a ária, mas ganhou o que define como um mundo de possibilidades dramáticas. “É interessante você falar na ária porque o caso da Bess é curioso, pois ela não tem ária. Quando ela canta Summertime, a ária já foi cantada por Clara e já reapareceu mais duas vezes ao longo da partitura.” O fascínio da personagem, portanto, está em algum outro lugar. “Bess está sempre dependendo da vontade dos demais personagens. É preciso mergulhar de forma profunda, investir muito na atuação, para encontrá-la, sua vontade, seu desejo. Isso é um desafio enorme e fascinante.”
Porgy and Bess estreou em 1935 e narra a história de Porgy, um mendigo que vive em Catfish Row, comunidade pobre fictícia no Sul do Estados Unidos, e tenta resgatar sua amada Bess das garras de Crown, violento e possessivo, e Sportin’Life, um traficante. Na montagem em cartaz no Theatro Municipal, dirigida por Grace Passô, há um diálogo entre a história original e a realidade brasileira.
“A universalidade da história é marcante”, diz Moore. “Ela poderia acontecer em qualquer lugar, em uma comunidade pobre no Brasil, na China, na Índia. Há, em qualquer sociedade, sempre algum tipo de divisão. E a beleza da obra está aí. Não importa o quão oprimido você é, sempre há alguma esperança. Há muita morte em Porgy and Bess, mas também muita esperança e isso é fascinante.”
Porgy and Bess tem sido, nos últimos anos, criticada pelo que muitos entendem como apropriação cultural, por um homem branco, de elementos da música americana negra, o jazz. Quando, recentemente, a obra voltou aos palcos do Metropolitan de Nova York (com Moore no elenco), a revista New Yorker resumiu bem os lados da discussão.
“Porgy and Bess é um retrato sensível da vida e das lutas de uma comunidade afro-americana segregada? Ou perpetua estereótipos degradantes a respeito dos negros?”, escreveu Michael Cooper, lembrando que essa não era uma discussão nova. Décadas antes, a escritora Maya Angelou, por exemplo, referia-se à obra como “grande arte” sobre “a verdade humana”. Já o ator Harry Belafonte recusou-se a participar de uma versão filmada da obra por considerar Porgy and Bess “racialmente degradante”.
Moore compreende a questão, mas não pensa duas vezes antes de dizer que “é irrelevante que a obra tenha sido escrita por um homem branco”. “Mais importante é entender os motivos que o levaram a escrever. E o que ele pretendia era abrir espaço para que grandes cantores negros, ignorados pelos teatros da época, pudessem ocupar o palco e ter suas vozes ouvidas. Foi uma enorme contribuição.”
Para ela, quando falamos de ópera, “ainda que estejamos nos baseando no mundo real, estamos sempre à margem da história”. Em outras palavras, não é possível julgar obras de arte “com o objetivo de encaixá-las em um grupo de ideias específicos, que refletem a sensibilidade de um tempo histórico”. “Por que os negros retratados são pobres? Por que são vistos sob luz negativa? É uma história específica a que está sendo narrada.”
“Desde que Porgy and Bess foi composta, muitas obras abordaram essa temática ou a temática da escravidão. Você viu o filme Doze Anos de Escravidão? [o longa de Steve McQueen é baseado no livro de Solomon Northup, que foi sequestrado em 1841 e vendido como escravo, trabalhando durante 12 anos antes de ser libertado; a produção venceu, entre outros prêmios, o Oscar de melhor filme em 2013]. Pois então: por que fazer um filme que retrata o negro como escravizado não é problemático? Quando é um filme, tudo bem, mas se é uma ópera, então ficamos todos ofendidos? Isso é hipocrisia. Há violência, muita, na comunidade retratada em Porgy and Bess, mas essa mesma comunidade vai se levantar para defender Bess.”
As pessoas reclamam que óperas são cantadas em outras línguas. Então você vai diminuir todo um gênero artístico porque tem preguiça de ler legendas? Isso é simplesmente preguiça intelectual
A partir da comparação entre filme e ópera, pergunto a ela se essa questão não passa também pelo olhar que o meio cultural tem, como um todo, sobre a ópera. Para colocar de outra forma, no imaginário que a associa ao passado, ao conservadorismo, a ópera, como gênero artístico, em essência, estaria sempre errada?
“Esse é o ponto. A ópera não é antiguidade, não é relíquia, é música moderna, é música para nossos dias. Quando um artista de R&B, de soul, da música country, coloca uma pequena orquestra para tocar junto, as pessoas consideram como algo cool. Mas violino na música clássica e na ópera é coisa de velho? Ora, as pessoas reclamam de tanta coisa. Reclamam de que óperas são cantadas em outras línguas, por exemplo. Então você vai diminuir todo um gênero artístico porque tem preguiça de ler legendas? Isso é simplesmente preguiça intelectual.”
Latonia Moore lembra de sua infância e adolescência. A relação com a arte sempre esteve ligada ao desejo de experimentar coisas novas. Como cantora, começou no jazz, um mundo em que havia muito a descobrir. Então, conheceu a ópera.
“Foi tão incrível de repente me perceber transformada em uma personagem”, ela conta. “Nessa busca de me elevar por meio da arte, de estar sempre de ouvidos e mente aberta, a arte, e com a ópera isso se tornou ainda mais claro, me ajudava a compreender a mim mesma e ao mundo de outra maneira.”
Ao voltar aos passos de sua formação, ela chama atenção ao fato de que os três prêmios Grammy que venceu foi pela atuação em “jazz operas”: Fire Shut Up in my Bones e Champion, de Terrence Blanchard, além de Porgy and Bess. “Acho que fui colocada aqui nesse mundo para fazer justamente isso”, diz. “A ópera hoje pode ser o que ela bem entender. Pode narrar novas histórias, pode narrar histórias antigas. O que ela precisa é ter em mente a grandiosidade do que o gênero propõe.”
Moore comenta que nem todos os colegas veem a questão dessa forma. “Há muitos cantores negros que temem ficar presos em papeis de óperas ligadas ao jazz e eu entendo essa preocupação. Eles temem não ser chamados para fazer outros repertórios, e isso pode mesmo ser verdade. Mas, no meu caso, podem me prender”, ela brinca.
A maior parte dos administradores, hoje, não têm coragem, visão, não buscam de verdade novas vozes, novas óperas. Sabe por que eu nunca havia sido contratada para cantar Bess? Porque as pessoas tinham problema com uma cantora acima do peso cantando uma personagem doente, viciada
A soprano, após duas décadas de carreira, fala sobre aposentadoria, do canto, mas não da ópera. Gostaria, no entanto, de desenvolver um outro papel. “Pretendo trabalhar com administração artística. A maior parte dos administradores, hoje, não têm coragem, visão, não buscam de verdade novas vozes, novas óperas. Sabe por que eu nunca havia sido contratada para cantar Bess? Porque as pessoas tinham problema com uma cantora acima do peso cantando uma personagem doente, viciada. Se estou aqui, é porque o Municipal tem um gerente de elenco, Pedro Guida, que soube olhar para mim com os ouvidos e me imaginar no papel. É uma realidade na nossa carreira se perceber forçado a ocupar espaços a partir de preconceitos. E eu quero trabalhar para ajudar a descobrir vozes, dar chance a talentos, estar sempre em busca do novo.”
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Ouvinte Crítico Ópera ‘Porgy and Bess’
![Latonia Moore em cena de 'Porgy and Bess', de Gershwin, no Theatro Municipal de São Paulo [Divulgação/Rafael Salvador]](/sites/default/files/inline-images/w-006_Rafael%20Salvador%20CR5_0606.jpg)
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