Texto de Lauro Machado Coelho publicado na edição de março de 2006 da Revista CONCERTO, na seção 'Repertório'
Supremo milagre: a capacidade da música de Mozart de transfigurar o libreto bastante ingênuo e óbvio de Emanuel Schikaneder, convertendo-o numa das mais extraordinárias criações da mente humana – A flauta mágica. Imensa deve ter sido a surpresa dos frequentadores do grande Oriente vienense ao se darem conta, na noite de 30 de setembro de 1791, no Freihaustheater auf der Wieden, de que Mozart e Schikaneder tinham construído a sua história a partir dos símbolos, dos códigos, dos rituais da Loja.
Muito se escreveu, desde então, a respeito do significado maçônico da Zauberflöte, do que representam as suas personagens, do que se esconde por trás de suas transparentes metáforas. Tudo isso tem um interesse histórico inegável, e é muito importante para que tenhamos uma ideia da orientação ideológica de Wolfgang Amadeus. Mas, hoje é coisa datada. Se a Flauta continua a nos maravilhar, 215 anos após a sua criação, é porque nela Mozart fez a mais completa síntese do teatro musical de seu tempo.
Nessa obra-prima, sem paralelo na música do século XVIII – escrita para um teatrinho mambembe de subúrbio –, ele faz a mais ousada combinação de estilos e de procedimentos de escrita jamais tentada desde a Favola d’Orfeo de Monteverdi. Em que outra ópera setecentista a mais elaborada coloratura de opera seria (as árias da Rainha da Noite) anda de mãos dadas com a cançoneta vienense de rua (as canções de Papageno)? E o misticismo da música iniciática das cerimônias maçônicas (as cenas no templo de Sarastro) fica lado a lado com o lirismo do opéra-comique de tema sentimental (as árias de Tamino) ou da ópera bufa (as cenas com Papageno e Monostatos)?
É surpreendente a capacidade que tem Mozart de fazer conviver harmoniosamente, dentro do mesmo espaço, materiais músicodramáticos que poderiam, em princípio, ser inteiramente incompatíveis. Ao contrário da riqueza de orquestração do Idomeneo ou das Bodas de Fígaro, a instrumentação da Flauta é relativamente simples. E não apenas porque ela se inscreva na tradição do Singspiel, ou porque se destinasse a um teatro com recursos menores. E sim porque há nela a tendência da plena maturidade – que percebemos também na Clemenza di Tito – a restringir-se ao essencial e, dessa simplicidade, extrair os mais refinados e surpreendentes efeitos.
É deliberada, por exemplo, a decisão de, na música aérea, extraterrena dos três Gênios, não usar os contrabaixos. Supremo milagre: esta ópera composta por um homem seriamente doente – que morreria em 5 de dezembro, dois meses depois de sua estreia – é uma das mais radiosas celebrações da alegria de viver que a história da música nos legou.
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