Notável Felipe Senna

por João Marcos Coelho 26/10/2024

O recém-lançado álbum Overture, do compositor paulistano de 45 anos, é a prova concreta de que rótulos são sempre postiços quando há talento, disciplina e qualidade de invenção

Recebo muitos releases diariamente tentando chamar a atenção para este ou aquele concerto, show, disco ou livro que estão sendo lançados. Começo o dia, portanto, garimpando o que tem mais interesse, não para o meu gosto pessoal, mas para a vida musical brasileira. É um mantra que procuro seguir. Foi quando topei com este parágrafo entre aspas:

“Essa obra é um marco histórico musical. Nela se comenta e se resolve de várias maneiras as falsas polêmicas entre música erudita e música popular, se revela a potência da música brasileira, se resolvem magistralmente desafios orquestrais com poucos elementos, se inventa uma nova forma de gravação, de áudio. Para além de uma densidade emocional enorme se encontra uma inteligência arquitetônica orquestral vasta e prazerosa. Esse é o projeto dos sonhos: composição excelente com arranjos inteligentes e sensíveis executados pela nata dos músicos brasileiros hoje, gravados nas melhores condições conhecidas e com enorme cuidado no tratamento acústico durante mix e master. O resultado agrada e desafia e te conduz sem violência ou mesmice, tudo surpreendente e instigante, muita gente vai se inspirar nesse criador completo que é o Felipe Senna.”

Esta reflexão da flautista, arranjadora e compositora Léa Freire vai direto ao ponto. Se você for ao portal da Maritaca, gravadora e editora que ela montou nos anos 1990, fica sabendo que Léa conviveu desde cedo, como estudante de piano, com Guarnieri, Villa-Lobos, Radamés Gnattali e Souza Lima entre os brasileiros, e com Bach, Debussy e muitos outros “estrangeiros”. Um perfil que termina assim: “Agora começa uma nova etapa – a de unir o popular ao erudito – o formalismo à improvisação, com sotaque brasileiro”.

O recém-lançado álbum Overture, de Felipe Senna, paulistano de 45 anos, é a prova concreta de que rótulos são sempre postiços quando há talento, disciplina e qualidade de invenção. Senna mostra neste álbum uma escrita musical tão consistente quanto qualquer obra dita erudita. E ao mesmo tempo “conversa” com a chamada musica das ruas, as músicas populares.  

Olhem seu currículo dito erudito: ele conquistou prêmios no Concurso de Composição Camargo Guarnieri e na Bienal de Música Brasileira Contemporânea. Sua obra abrange uma vasta gama de gêneros, desde suas raízes na música brasileira até criações sinfônicas, camerísticas e teatrais. Mestre em Artes com distinção pela City University of London e bacharel em música pela Unesp, teve obras encomendadas e estreadas por orquestras e grupos de câmara do Brasil e exterior, como a Orquestra Sinfônica Brasileira, Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal de São Paulo, Jazz Sinfônica, Zurich String Orchestra, Echo Chamber e Diablo Symphony (US), orquestras dos conservatórios de Rennes e Lannion (FR).

Oito anos atrás ele fundou o Câmaranóva, inaugurando um novo jeito de “fazer” música brasileira.  Em Overture, o grupo, modular, conta com duas e às vezes três flautas; entre dois e quatro clarinetes; saxofone; fagote, trompete/flugelhorn e trombone/trompa; dois eufônios; de três a cinco violinos; uma a duas violas; violoncelo. E Felipe ao piano, direção e composição.

A verdade é que nossos ouvidos “brasileiros” topam quase o tempo todo com surpreendentes encontros tímbricos. Além disso, quando nos acostumamos com um gingado, uma trompa brahmsiana irrompe nos devolvendo a sensação de que a obra é “erudita”. Nem uma coisa nem outra. Ou melhor, as duas

“Na literatura musical”, escreve, “o termo Overture significa ‘introdução’, ‘abertura’. Escolhemos esse nome como símbolo de uma campanha para a abertura de novos caminhos na música de concerto do nosso país, caminhos que reconhecem e valorizam a produção contemporânea brasileira”.

A verdade é que nossos ouvidos “brasileiros” topam quase o tempo todo com surpreendentes encontros tímbricos. Além disso, quando nos acostumamos com um gingado, uma trompa brahmsiana irrompe nos devolvendo a sensação de que a obra é “erudita”. Nem uma coisa nem outra. Ou melhor, as duas. Felipe diz, e sua música extraordinária prova de modo delicioso, que o álbum é concebido como um concerto popular (dá pra chamá-lo assim?). Em seu texto no encarte, ele diz que “as obras escolhidas para compor este álbum trazem o rico imaginário brasileiro para dialogar com a música de concerto. Elementos de nossa cultura musical, literária e folclórica dão a elas motes e alicerces, informam e moldam sua narrativa instrumental originalmente destinada a formações sinfônicas”.  E conclui: esta gema musical “ilustra de forma incisiva as muitas possibilidades de aproximação entre estas linguagens – a brasileira, a sinfônica e a camerística”.

Prefiro chamar de  “viagem musical inclusiva à brasileira”, onde temos os melhor dos mundos: um compositor, arranjador e pianista extraordinário, ao lado de grandes músicos brasileiros. Não daria pra citar todos, mas tem Léa Freire, Proveta, Rafael Cesário, Douglas Braga, Edu Ribeiro, a harpista Paola Baron. No total, 31 músicos, liderados por Senna.

Último detalhe, para te deixar com mais vontade ainda de escutá-lo: o encaminhamento das composições é o de um concerto, da Overture que, como na música dita clássica, desfila os temas das obras que virão a seguir, até a peça final, Jeu nº 5,  impressionista, nascida de uma canção de ninar em clima onírico. Ou, como Felipe prefere, “encerrar com um sonho nos dá esperança de continuidade, reverberação e frutos”.

Entre a overture e a canção de ninar, um mundo maravilhoso e incrivelmente brasileiro desfila diante de nossos ouvidos. Duas obras são centrais neste álbum: Danzas nº 2 e Lendas.

Na primeira, Felipe tentou imaginar  uma resposta para a seguinte questão: como seria um concerto brasileiro para violino, cello, piano e orquestra no século 21?O resultado é arrebatador. Por isso, reproduzo o raciocínio de Felipe na íntegra: ele propõe e sai vencedor do desafio de realizar “uma leitura contemporânea de um concerto triplo, com cerca de 15 minutos (que se relaciona com a percepção de passagem do tempo dos dias atuais), sem divisão de movimentos (embora claramente estruturada em três sessões ‘rápido-lento-rápido’), que flerta com modelos europeus (como a forma cíclica da 1ª sessão e o rondó da 3ª) através de um discurso fincado em elementos brasileiros (mais notadamente rítmicos), com espaço para o lirismo e o virtuosismo esperados em um concerto – mas privilegiando a proposta estética sobre a quantidade de notas – além de técnicas estendidas e efeitos percussivos que ajudam a estabelecer a ponte entre os universos envolvidos”.

Lendas, por sua vez, tem parentesco de objetivos do Guia da orquestra para os jovens, de Britten, mas as semelhanças param por aí. Estamos diante de uma notável suíte folclórica (a expressão é de Felipe) idealizada para “apresentar a orquestra e seus instrumentos para crianças e jovens brasileiros por meio de uma obra baseada em nossa própria cultura”. Tem quatro movimentos: Saci; Vitória-Régia e curupira, de origem tupi-guarani; e a Mula-sem-cabeça, da tradição europeia/cristã, esclarece Felipe.  

Por tudo isso, este é um daqueles álbuns mais do que necessários, essenciais neste momento da vida musical brasileira, em que o conceito de inclusão parece ter finalmente se infiltrado nos domínios eruditos. Uma lição que deveríamos ter aprendido de um Charles Ives, que deve ter ficado sabendo da ida de Dvorák para os Estados Unidos. Em vez de europeizar temáticas indígenas, ele abriu os ouvidos para os sons das ruas.

Grande Charles Ives, notável Felipe Senna.

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O compositor Felipe Senna [Divulgação]
O compositor Felipe Senna [Divulgação]

 

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