CLAUDIO SANTORO (1919-89)
1 Canto de Amor e Paz (1950)
2-4 Sinfonia nº 4 "Sinfonia da Paz" (1953-54)
5 Choro Concertante para saxofone tenor e orquestra (1951)
6-9 Sinfonia nº 6 (1957-58)
10 Fantasia para violino e orquestra (1959-60/1980)
Orquestra Filarmônica de Goiás
Coral Sinfônico de Goiânia (4)
Neil Thomson – regente
Emmanuele Baldini – violino (10)
Pedro Bittencourt – saxofone (5)
Texto da Revista CONCERTO, edição de Setembro 2024
Novo lançamento da série Música do Brasil, o álbum dá mais um passo na série da integral das sinfonias de Claudio Santoro, projeto que já está entre os mais importantes da música brasileira das últimas décadas. Desta vez, a Orquestra Filarmônica de Goiás e seu diretor Neil Thomson apresentam as sinfonias nº 4 e nº 6. Do fim dos anos 1940, a Quarta carrega uma mensagem de paz, incluindo o coro no último movimento, e é a primeira grande obra do autor da época de sua aproximação com a União Soviética. Já a Sexta, de 1957 e também pertencente à fase nacionalista de Santoro, é uma lição de desenvolvimento e coesão musical. As obras aparecem aqui acompanhadas de outras peças marcantes. Para orquestra de cordas, Canto de amor e paz é símbolo da transição que o autor fez da linguagem dodecafônica para a música ligada ao nacionalismo. O Choro concertante, escrito em 1953, quando o compositor retorna ao Brasil após período na URSS, trabalha temas brasileiros de maneira profundamente original, enquanto a Fantasia para violino, de 1980, reutiliza esboços de dois concertos para o instrumento criados nos anos 1950. Em todas as peças, fica evidente o cuidado no acompanhamento por parte de Thomson e a musicalidade rica dos solistas Pedro Bittencourt e Emmanuele Baldini, que dão a real dimensão da diversidade e da inventividade da escrita de Santoro..
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Texto do encarte do CD
Claudio Santoro (1919 – 1989)
Sinfonias nºs 4 e 6 • Canto de Amor e Paz • Choro Concertante • Fantasia
Em 1948, Claudio Santoro estava morando em Paris, tendo recebido uma bolsa de estudos do governo francês. O jovem compositor já havia escrito três sinfonias e um bom número de obras orquestrais e de câmara nessa época, e havia encontrado seu próprio caminho para seguir pela floresta da técnica dodecafônica, que estava no cerne do debate vanguardista no Brasil na década de 1940. Ele também estava, no entanto, começando a se irritar com os limites impostos pela técnica e a procurar alternativas estéticas para esse caminho escolhido.
Foi nesse contexto que Santoro compareceu ao Segundo Congresso Internacional de Compositores e Críticos Musicais como delegado brasileiro. Realizado em Praga em maio de 1948, o Congresso concluiu com a formulação de um manifesto convocando os compositores a evitar o subjetivismo excessivo, focar em suas próprias tradições musicais nacionais e produzir obras que pudessem ajudar a educar as massas. Santoro, que na época era membro do Partido Comunista Brasileiro, encontrou neste manifesto um conjunto de princípios estéticos, políticos e filosóficos que orientariam seu trabalho na década seguinte.
A primeira grande obra que ele compôs após o Congresso foi Canto de Amor e Paz ('Canção de Amor e Paz') para orquestra de cordas (1950). Embora ainda fosse abstrato e não fizesse uso direto de elementos nacionalistas, marcou a renúncia de Santoro aos idiomas atonais e atua como uma espécie de transição entre uma fase composicional e a seguinte. Definido logo no início pelas cordas em uníssono, seu tema generativo estabelece imediatamente a atmosfera reflexiva que caracteriza a obra como um todo. Sua figuração inicial, composta de arpejos e células repetidas, é a força motriz por trás dessa reflexividade e é explorada de todos os ângulos à medida que a peça avança. Canto de Amor e Paz foi estreado no Rio de Janeiro em 1951 pela Orquestra Sinfônica Brasileira e Eleazar de Carvalho. No ano seguinte, recebeu o Prêmio Internacional da Paz pelo Conselho Mundial da Paz em Viena.
O tema do pacifismo permeou toda a carreira de Santoro, desde a inacabada Ode a Stalingrado do período imediatamente posterior à guerra (1947), até os oratórios Berlim, 13 de agosto de 1961, escritos em resposta à construção do Muro de Berlim, e Os Estatutos do Homem de 1984. Seu maior sucesso nesse sentido, no entanto, foi sua Quarta Sinfonia , composta em 1953 e conhecida como Sinfonia da Paz .
Dedicada aos "compositores soviéticos", esta é uma das obras mais acessíveis de Santoro e uma das mais influentes em termos de construção de sua reputação internacional, especialmente na Europa Oriental na década de 1950. A sinfonia foi publicada e gravada na URSS (com o coro final cantado em russo) e foi recebida com entusiasmo por compositores como Khachaturian e Kabalevsky. O próprio Santoro indicou que era uma obra programática: o primeiro movimento representava a luta do povo pela paz; o segundo, o contraste entre a alegria de viver e uma reflexão sobre os dramas da vida; e o terceiro era uma manifestação popular pela paz: "Escrevi o final como se fosse um alegre desfile de carnaval, com pessoas agitando bandeiras e faixas... essa era a ideia, por isso usa percussão típica brasileira, com cheiro do Rio de Janeiro, onde imaginei pessoas na [Avenida] Rio Branco clamando por paz."
O Allegro de abertura é animado e compacto, e baseado em dois temas. O primeiro deles, cheio de energia, tem a sensação de um chamado militar, com seus intervalos arpejados e notas repetidas, enquanto o segundo é mais lírico, desdobrando-se acima de um ritmo suavemente sincopado nas cordas. O movimento conclui com um retorno ao motivo inicial.
O segundo movimento começa com um solo de corne inglês que se torna a base para uma meditação estendida, fluida e ininterrupta. Um solo de fagote, mais animado e dançante em caráter, marca o início da seção central Allegro , proporcionando um contraste com a atmosfera predominantemente melancólica deste movimento. Esta seção tem muito em comum com os movimentos de scherzo nas outras sinfonias que Santoro escreveu durante esta década, especialmente no que diz respeito aos seus ritmos brasileiros e uso abundante de percussão. O fato de que ela é integrada ao movimento lento pode explicar por que a Quarta é a única sinfonia de seu período nacionalista a ter apenas três movimentos.
O final abre com um motivo de cordas que lembra o tema de abertura da sinfonia, mas com um tom mais solene. A primeira parte é puramente orquestral, mas reúne vários elementos que são então reintroduzidos pelo coro, que entra depois de um fugato de cordas naquele motivo inicial. A canção do povo aumenta em intensidade, culminando na coda carnavalesca e radiante com seus repetidos gritos de 'Paz!' ('Paz!'). A obra foi estreada no Rio de Janeiro em 1954 pelo Coro e Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal, sob a regência de Pablo Komlós.
A paz estava em falta na vida de Santoro naquele momento – casado e com três filhos, ele estava fazendo malabarismos com vários empregos para sustentar a si mesmo e sua família. Em 1950, tendo retornado ao Rio de Janeiro, ele era tanto líder da Orquestra Sinfônica Brasileira quanto violinista na orquestra da Rádio Tupi, que tocava principalmente música popular. Em pouco tempo, ele também começou a compor peças para os programas infantis da estação de rádio e música de fundo para algumas de suas outras produções. Seu sucesso na Rádio Tupi levou a convites para escrever trilhas sonoras de filmes, pelas quais ele ganhou vários prêmios. Apesar de todo seu reconhecimento, no entanto, Santoro continuou a reclamar de não ter tempo para trabalhar em seus próprios projetos.
Em 1951, foi nomeado diretor musical da Rádio Clube do Brasil, estabelecendo a orquestra da estação de rádio e, finalmente, tendo a chance de executar algumas de suas próprias obras. Foi durante esse período que ele fez os primeiros esboços para um concerto para sax tenor e orquestra. Ao lado do título no rascunho da partitura estão as palavras "para rádio", sugerindo que Santoro concebeu a obra para sua orquestra recém-formada, com a qual ele deu a estreia de seu Choro Concertante em 1953, com o saxofonista Joaquim Gonçalves (conhecido como "Quincas").
Lançada em um único movimento, a obra abre com um tema definido por trombone solo que é então usado para uma série de variações livres. Isso é seguido por uma seção de più mosso bem tipicamente brasileira – Santoro até deixa uma das partes de percussão para ser improvisada, simplesmente marcando-a como ritmo de baião , 'em ritmo de baião ', [o baião sendo um gênero de música e dança do Nordeste do Brasil com um ritmo de compasso binário distinto], sabendo que seus músicos não precisariam de mais explicações. Após uma curta cadência para o solista, a música alterna entre episódios compreendendo variações sobre o tema inicial e outros apresentando elementos de dança brasileira até chegar à sua vibrante conclusão.
Os anos seguintes foram repletos de intensa atividade composicional. Além de escrever trilhas sonoras para filmes e músicas para gravações voltadas para crianças, Santoro continuou a produzir obras de concerto no mesmo ritmo frenético. Em 1957, ele começou a trabalhar na Sexta Sinfonia , concluindo-a no ano seguinte. É a mais curta e levemente orquestrada das sinfonias escritas em seu período nacionalista, mas também é, em vários aspectos, uma das mais originais.
O primeiro movimento alterna entre dois temas muito claramente definidos: o primeiro é nervoso e agitado, cheio de notas staccato, apresentado em uma orquestração particularmente transparente, semelhante a uma câmara, dominada pelos sopros de madeira; o segundo apresenta uma longa melodia nas cordas acima de um motivo hesitante para clarinete, que se torna uma força motriz secundária no movimento. A seção de desenvolvimento é extremamente compacta, fazendo uso cirúrgico dos diferentes temas.
Em seguida, vem um Andante molto inteiramente baseado em um motivo de quatro notas que é introduzido pianíssimo por violino solo e cujo potencial expressivo é totalmente explorado ao longo do resto do movimento. O curto scherzo , em estilo claramente nacionalista, é baseado em um ritmo ostinato estabelecido pelos clarinetes, com temas contrastantes então confiados ao oboé e às cordas.
É no Allegro final que se concentram os momentos mais dramáticos da sinfonia, criando algo muito diferente do caráter luminoso dos movimentos anteriores e, de certa forma, estabelecendo o elo entre a Quinta Sinfonia e a Sétima . Neste movimento, dominado por um fluxo agitado de semicolcheias nas cordas, o contraste vem de uma seção central sombria e lenta e da coda, única em todo o ciclo de sinfonias, na qual a orquestra parece desaparecer gradualmente, a música terminando em um longo acorde suspenso de pianíssimo . A sinfonia foi estreada em Paris em 1963 pela Orchestre Philharmonique de Radio France, com Charles Bruck no comando.
Ao longo de sua vida, Santoro compôs três concertos para piano, um para violoncelo e um para viola, mas, curiosamente, nunca escreveu um para seu próprio instrumento, o violino. Além de um Concerto para Orquestra de Câmara com violino obbligato, composto em 1943, ele fez esboços para dois concertos para violino na década de 1950, ambos os quais ficaram inacabados. O material para o segundo deles foi, no entanto, transformado na Fantasia para Violino e Orquestra , que foi escrita entre 1959 e 1960, tornando-se um contemporâneo exato da Sétima Sinfonia . A obra foi orquestrada em 1980 e estreada no Rio de Janeiro em 1982, com o compositor regendo a Orquestra Sinfônica Brasileira e a solista Elisa Fukuda. Santoro revisou o final em 1985, e é esta versão que é executada atualmente. Ele compreende dois movimentos interligados: o Andante inicial apresenta uma melodia longa e lírica para o solista, ouvida durante a maior parte do movimento; isso é seguido por um Allegro molto mais tenso e virtuoso que leva a Fantasia a um final brilhante.
Gustavo de Sá
ORQUESTRA FILARMÔNICA DE GOIÁS
Desde sua criação em 1980 pelo maestro Braz de Pina Filho, a Orquestra Filarmônica de Goiás tem se comprometido com a democratização da música erudita no estado de Goiás, dando ênfase especial à música brasileira em sua programação.
Em 2012, a orquestra passou por uma grande reestruturação que inaugurou seu período mais frutífero e criativo e levou à nomeação em 2014 de Neil Thomson como maestro principal e diretor artístico. Sob a liderança de Thomson, a orquestra cresceu rapidamente de sua posição como um conjunto de importância local para um de importância nacional. Agora amplamente considerada uma das três principais orquestras do Brasil, a Orquestra Filarmônica de Goiás é conhecida por seu estilo de tocar energético e dinâmico e abordagem inovadora à programação.
A orquestra fez as estreias sul-americanas de Des canyons aux étoiles de Messiaen, Rituel in memoriam Bruno Maderna de Boulez e Como una ola de fuerza y luz de Nono. Também está envolvida em um projeto de dez anos para filmar as sinfonias completas de Haydn, "Haydn no Cerrado".
CORAL SINFÔNICO DE GOIÂNIA
Fundado em outubro de 1999, o Coral Sinfônico de Goiânia é resultado da fusão de dois grupos já existentes: o Coral Municipal e a Camerata Vocal de Goiânia. Faz parte da Orquestra Sinfônica de Goiânia, mantida pela prefeitura da capital goiana. Composto por cantores profissionais, seu repertório é amplo, abrangendo desde obras corais a cappella até grandes obras corais-sinfônicas, buscando sempre valorizar a literatura coral brasileira ao lado do repertório internacional.
A missão do Coral Sinfônico de Goiânia é difundir e promover a música coral na capital goiana, apresentando-se em teatros, escolas e igrejas, entre outros locais. Ao longo de sua história, o coral colaborou com diversas orquestras, tendo sido regido por renomados maestros como Isaac Karabtchevsky, Neil Thomson, Abel Rocha, Benoît Fromanger e Fabio Zanon, entre outros. Nos últimos anos, o foco do coral tem se voltado para o repertório a cappella dos séculos XX e XXI, além de apresentações de obras sacras de diferentes épocas ao lado de orquestras.
PEDRO BITTENCOURT
Pedro Bittencourt é saxofonista, professor e pesquisador dedicado à música de concerto e contemporânea. Já se apresentou em festivais no Brasil, França, Alemanha, Suíça, Portugal, Espanha, Grécia, Eslovênia, Canadá, México, Cuba e China.
É professor assistente de saxofone no departamento de sopros da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) desde 2012. É também diretor do Conjunto de Saxofones da UFRJ e fundador, diretor e saxofonista do conjunto ABSTRAI (música de câmara contemporânea, com eletrônica).
Atua regularmente como solista e músico com a Orquestra Sinfônica Nacional (México) (OSN), Orquestra Sinfônica da UFRJ (OSUFRJ), Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB) e a orquestra do Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
Bittencourt estudou para seu doutorado em estética, ciências e tecnologias das artes/música no Centre de recherche Informatique et Création Musicale (CICM) da Universidade de Paris 8, com pesquisa sobre música mista para saxofones sob a orientação do compositor Horacio Vaggione.
EMMANUELE BALDINI
Emmanuele Baldini nasceu em Trieste, Itália. Após os estudos em sua cidade natal, ele continuou seu treinamento de violino em Genebra, Salzburgo e Berlim, estudando regência com Isaac Karabtchevsky e Frank Shipway. Baldini é um violinista premiado que se apresentou em todas as principais salas de concerto europeias, além daquelas na América Latina e no Brasil.
Após uma carreira de grande sucesso como violinista, Baldini embarcou em novos empreendimentos musicais como maestro. Ele fundou o Quarteto da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) e colaborou com artistas de renome internacional como Maria João Pires, Jean-Philippe Collard e Jean-Efflam Bavouzet. Baldini foi spalla da Orchestra del Teatro Comunale di Bologna, da Orchestra del Teatro alla Scala di Milano e da Orchestra del Teatro 'Giuseppe Verdi' di Trieste, e desde 2005 é spalla da Osesp. Ele também atuou como spalla convidado da Orquesta Sinfónica de Galícia. Entre 2017 e 2020 foi diretor musical da Orquestra de Câmara Valdivia no Chile e a partir de 2022 é maestro titular da Orquestra Sinfônica do Conservatório de Tatuí no Brasil. Em outubro de 2023, Emmanuele Baldini foi nomeado diretor musical da nova Orquestra Sinfônica Ñuble no Chile. www.emmanuelebaldini.com
NEIL THOMSON
Neil Thomson estudou regência no Royal College of Music com Norman Del Mar e na escola de verão Tanglewood com Leonard Bernstein.
Ele é o maestro titular e diretor artístico da Orquestra Filarmônica de Goiás desde 2014, levando a orquestra à proeminência nacional com sua defesa do repertório brasileiro e contemporâneo. Ele também desfruta de uma carreira internacional movimentada trabalhando com todas as principais orquestras do Reino Unido e a Yomiuri Nippon Symphony Orchestra, Tokyo Philharmonic Orchestra, Tokyo Symphony Orchestra, Russian National Orchestra, São Paulo State Symphony Orchestra (Osesp), WDR Rundfunkorchester, Lahti Symphony Orchestra e a Romanian National Orchestra, entre outras.
Ele se apresentou com muitos solistas ilustres, incluindo Dame Felicity Lott, Sir Thomas Allen, Sir James Galway, Nelson Freire, Jean Louis Steuerman e Antonio Meneses. De 1992 a 2006, ele foi professor de regência no Royal College of Music, Londres, a pessoa mais jovem a ocupar esse cargo. Ele foi nomeado Membro Honorário do RCM em reconhecimento aos seus serviços à instituição. www.neilwthomson.com
Claudio Santoro e a música como arma de paz
Por João Marcos Coelho
Publicado no site em 30/09/2024
Entre uma e outra cadeirada ou soco na cara nos debates televisivos, a atuação dos candidatos nas eleições à Prefeitura de São Paulo sofre de uma outra amnésia que, embora hábito arraigado em nossos políticos, insiste em se repetir a cada eleição: a cultura simplesmente não existe para eles. É uma lástima. Não agiriam assim, se soubessem (ou alguém lhes dissesse) do poder que a cultura tem para despertar consciências e sensibilidades, modificar trajetórias de vida e ser o motor mais profundo que move os seres humanos. Isso por aqui, em Pindorama, como se dizia antigamente. Porque no mundo a polarização parece que veio para ficar de modo ainda mais cruento e de novo separar judeus de árabes numa guerra que a cada momento se agrava.
Vou ficar em apenas dois exemplos de como a música pode mostrar, sem palavras, que vale a pena dialogar, que a paz é mais do que um objetivo utópico e inalcançável. De certo modo, o Duo Amal, prova isso. Dois pianistas que tinham tudo para se odiarem juntam-se para... fazer música. De um lado, o judeu-israelense Yaron Kohlbert; de outro, o árabe-palestino Bishara Haroni. Eles se apresentaram na semana passada dentro da primorosa temporada da Tucca, num momento em que um conflito de enormes proporções no Oriente Médio está se espalhando velozmente. Os mortos contam-se já aos milhares.
É mais do que feliz coincidência, é auspicioso que na mesma semana seja lançado um CD que reforça e chama mais ainda a atenção do mundo para a necessidade de perseguir a paz. Melhor ainda, a voz musical que se levanta é a de um de nossos maiores compositores, o amazonense Cláudio Santoro.
É o 24º volume do projeto Brasil em Concerto, concebido e concretizado pelo diplomata brasileiro Gustavo de Sá, num momento nebulosíssimo para a cultura por aqui cinco anos atrás. É um raro projeto virtuoso e necessário que se firma cada vez mais. Prevê a gravação de cem obras sinfônicas dos séculos XIX e XX.
Voltando a Santoro. Este CD traz a música que precisamos ouvir neste momento, a que fala de paz. A peça central é a Sinfonia nº 4, composta em 1953, que ele chamou de Sinfonia da Paz e é uma de suas criações mais conhecidas. Dedicou-a aos compositores soviéticos. Começava-se a viver a era do degelo na União Soviética, devido à morte de Stalin, em março daquele ano.
Como conta Gustavo de Sá no texto do encarte do álbum, Santoro deixou claro que esta sinfonia era uma “obra programática: o primeiro movimento representaria a luta do povo pela paz; o segundo, o contraste entre a alegria de viver e a reflexão sobre os dramas da vida; finalmente, o terceiro seria uma manifestação popular pela paz: ‘Fiz um final como se fosse uma passeata carnavalesca, alegre, o povo com bandeiras, cartazes... era essa a minha ideia, por isso que tem aquela percussão bem brasileira, bem carioca, em que eu imaginava o povo na [Avenida] Rio Branco defendendo a paz’”.
A vibrante leitura do Coro Sinfônico de Goiânia e da Filarmônica de Goiás só aumenta a admiração pelo ótimo resultado musical obtido pelo maestro Neil Thomson. Aliás, a paz já é o mote da primeira faixa, Canto de amor e paz, para orquestra de cordas, que compôs em 1950, ainda sob o impacto de sua participação, dois anos antes, no Congresso Internacional de Compositores e Críticos de Música, que aconteceu em Praga. Santoro seguiu à risca o manifesto final do congresso convocando os artistas a fugir do “subjetivismo excessivo” e evocar “expressões populares nacionais”. Ou seja, o mote era seguir o conselho do comissário Jdanov da Cultura, responsável pelo chamado realismo socialista.
Gustavo de Sá anota que “o pacifismo é um dos grandes temas que permeiam todo o percurso artístico de Santoro, desde o imediato pós-guerra, com a inacabada Ode a Stalingrado (1947) até os oratórios Berlim, 13 de agosto (1961), composto sob o impacto da construção do Muro de Berlim, e Os estatutos do homem (1984)”.
O álbum dedica-se a obras da década de 50, quando Santoro morou e trabalhou no Rio de Janeiro. Dava expediente como spalla da Orquestra Sinfônica Brasileira e também empunhava seu violino na Orquestra da Rádio Tupi. Um contexto “eruditopopular” que se encaixava bem em sua postura nacionalista, àquela altura.
É o caso do Choro Concertante para sax-tenor, de 1951: como se estivesse compondo e arranjando para os músicos da Tupi, só indicou ao pessoal da percussão “ritmo de baião” no final.
Emmanuele Baldini é o solista da Fantasia para violino e orquestra, obra resultante de algumas tentativas de Santoro, nos anos 1950, de compor um concerto para o seu instrumento. Não concluiu nenhum deles, mas transformou-os nesta Fantasia, estreada por Elisa Fukuda com OSB e Santoro na regência, em 1980.
Como as demais obras da década de 50, a Sinfonia nº 6, em quatro movimentos mais curtos e concisos, completa este magnífico passeio pela música de Santoro. E o que é melhor, em interpretações de primeira qualidade. Aplausos à Filarmônica de Goiás, seu maestro Neil Thomson e aos solistas Pedro Bittencourt e Emmanuele Baldini. E, nunca é demais: o país agradece a Gustavo de Sá.
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