‘Carmen’ do Theatro Municipal do Rio mostra força, criatividade e excessos

por Márvio dos Anjos 17/07/2023

RIO DE JANEIRO – A encenação da Carmen, de Bizet, confirma duas tendências atuais do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, já percebidas pelos frequentadores mais atentos da casa da praça Floriano. A primeira é que a temporada lírica propriamente dita, com montagens cenicamente pensadas, só começa no aniversário do teatro. Logo, convém ao melômano carioca ter sempre o 14 de julho em mente.

A segunda tendência é a de que essa montagem seja um sucesso de público, porque o título escolhido será famoso e a plateia está faminta. Já passamos por Fausto, antes da pandemia, em 2019. Em 2022 foi a vez de um Don Giovanni, de Mozart. Agora, temos Carmen e sua fieira de melodias assobiáveis, uma verdadeira decana da música pop. A simples demanda represada já garante que os ingressos se esgotem rapidamente, mas isso tem mais a ver com escassez do que com expectativas.

Porque as expectativas são sempre a de um espetáculo saído do combate entre o orçamento exíguo e a obrigação artística (e muita força de vontade) de entregar um aniversário à altura da história do teatro – o que, uma vez por ano, é possível conseguir. Uma boa notícia que, de certa forma, encobre outras, como o fato de que há anos nao é possível que o espectador se programe com antecedência para ver óperas lá. Como falar de formar plateias com títulos famosos, se a ópera é bissexta? Como depender menos de aniversários e impedir que o teatro seja um museu de si mesmo?

A questão é que toda montagem do Theatro Municipal do Rio de Janeiro lida com esses problemas não evaporáveis do estado falido e historicamente pouco interessado em ópera, e isso se impõe a todos os diretores. Não há na Cinelândia o tal debate estético entre a ortodoxia das intenções do compositor e a possibilidade de uma releitura: toda a penúria do Municipal do Rio orienta a estética dos espetáculos, assim como a censura dos anos da Ditadura Militar tinha um impacto estético na programação das TVs e nas letras metafóricas da MPB. Com isso, arrisco dizer que o Theatro Municipal dita, a cada aniversário, uma estética cênica perceptível, que poderíamos chamar de Semiminimalismo Carioca.

Essa hipotética corrente se orienta por leituras respeitosas das obras dos compositores, cenografia de simplicidade eficiente, sem aspirações realistas; tudo isso será apoiado por iluminação criativa e certo luxo com ortodoxia nos figurinos. Portanto, onde cenografia e iluminação sugerem, os figurinos afirmam. Há um desequilíbrio, já que o corpo do cantor traz uma informação de tempo e espaço realista enquanto o ambiente é mais vago, convocando a imaginação do espectador a colaborar com o espetáculo.

A Carmen de Julianna Santos é um exemplo desse semiminimalismo, assim como foi o Don Giovanni (2022), de André Heller-Lopes, para citar dois espetáculos de aniversário da casa. A obra de Bizet foi apresentada com excelentes figurinos de Marcelo Marques, todos muito sevilhanos e andaluzes, reluzentes, caracterizando perfeitamente a ideia que temos dos personagens de Bizet – houve requinte detalhado no traje do toureiro Escamillo (vivido pelo barítono Leonardo Neiva) e no vestido dourado com que a Carmen de Luisa Francesconi foi assassinada.

Ao fundo, Julianna criou a sugestão de Sevilha, amparada pela excelente cenografia de Natalia Lana: grandes estruturas de madeira sugeriam com eficiência os ambientes da ópera, ora na vertical (a fábrica de cigarros do primeiro ato), ora suspensas na horizontal em perspectiva (a taberna de Lilas Pastia). O terceiro ato – o do acampamento cigano – teve algum realismo montanhoso. O quarto ato, talvez o menos efetivo no faz-de-conta, sugeria a fachada da praça de touros, com estruturas que formavam torres perceptíveis, do tipo que reconhecemos em estádios de futebol. Com a iluminação de Paulo Ornellas, que foi uma indiscutível protagonista da coesão do espetáculo, cada ato ganhou personalidade forte e empolgante, do tom terroso inicial ao sanguíneo do fim. 

A parte musical foi bem executada. Na orquestra, Felipe Prazeres regeu um conjunto vibrante em partitura hiperconhecida, na qual a maioria dos andamentos se mostrou acertada – algo fundamental para que Carmen se mostre coesa com seus números sucessivos. A se lamentar apenas o trompete desafinado na troca de guarda do primeiro ato e certa sensação de confusão no quinteto das ciganas com os contrabandistas. O coro residente esteve bem, e a participação do Coro Infantil da UFRJ trouxe enorme graça ao quarto ato.

Cena da produção de 'Carmen', de Bizet, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro [Divulgação/Daniel Ebendinger]
Cena da produção de 'Carmen', de Bizet, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro [Divulgação/Daniel Ebendinger]

Aos 25 anos de carreira, Luisa Francesconi tem a sensualidade e a voz para uma Carmen que defende sua liberdade sem ressalvas, oferecendo a si mesma como sacrifício no altar da escolhas individuais. Cantou uma esplêndida Habanera e exibiu seus dotes cênicos do início ao fim, beneficiada pela acertada direção de atores – um dos talentos de Julianna Santos. Apesar de sua canção cigana do segunto ato ofuscada por um andamento algo arrastado e pelo sapateado cacofônico dos bailarinos que a circundavam, Francesconi foi da sofisticação em suas árias à garra verista com o conhecido profissionalismo.

A mezzo soprano foi a única cantora trazida de fora do coro do Municipal, ao lado do barítono Leonardo Neiva, que chegou credenciado por sua contratação para a temporada da Ópera Estatal de Viena. Foi um Escamillo refinado, de grandes dotes vocais e cenicamente muito convincente. O que tornou muito trágica a sua participação off-stage, em que o ouvimos repetir a melodia do Toreador totalmente descolado do tom da orquestra.

Dentre os protagonistas domésticos, o tenor (e diretor artístico do Municipal) Eric Herrero mostrou uma técnica sem espalhafatos, aproveitando-se de um timbre escuro que remete a Plácido Domingo e Rolando Villazón. Não é um tenor de abundante volume; porém, numa partitura com que demonstrou intimidade, sua voz foi mais expressiva do que cerebral e cometeu pianíssimos de ousada beleza no primeiro ato. Entregou uma rica La fleur que tu m'avais jetée  e teve ótima presença cênica enquanto seu Don José ainda estava longe do abismo. No fim, seu personagem trôpego teve algo de caricatura, mas nada disso manchou sua ótima noite.

Sobre sua dupla posição de protagonista e diretor artístico, há pouco o que comentar: na última década e meia, diretores artísticos e presidentes do teatro tinham o hábito de se programarem, com a exceção notável de João Guilherme Ripper. Escalar membros do próprio teatro sem dúvida é uma forma de produzir em meio à penúria orçamentária; a questão é que tanto Herrero quanto sua esposa – a soprano e membro do coro Flavia Fernandes (a correta Micaela do primeiro elenco) – ficam sob o microscópio da crítica quando escalados para contracenarem. Ambos têm suas carreiras no Municipal com méritos, acertos e oscilações inerentes aos seus trabalhos artísticos; nas próximas programações, poderiam talvez evitar dúvidas desnecessárias sobre si.

Por fim, se o leitor da CONCERTO achou este texto longo, vale afirmar que estivemos diante de uma verdadeira Valquíria cigana. O espetáculo completo tomou quatro horas (das 17h às 21h, com dois intervalos longos e um curto), em que todos os prelúdios e entreatos foram executados, além da inclusão de danças que tradicionalmente não são encenadas no quarto ato, obrigatórias para incluir o Ballet do teatro no ponto alto da festa. É preciso refletir sobre esta prática, sob pena de excluir da ótima montagem de Julianna Santos alguns espectadores mais, digamos, minimalistas – sobretudo nas récitas de meio de semana.

"Carmen", de Bizet, segue em cartaz no Theatro Municipal do Rio de Janeiro até o dia 30 de julho; veja mais detalhes no Roteiro do Site CONCERTO

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