Claudio Santoro e a música como arma de paz

por João Marcos Coelho 30/09/2024

Entre uma e outra cadeirada ou soco na cara nos debates televisivos, a atuação dos candidatos nas eleições à Prefeitura de São Paulo sofre de uma outra amnésia que, embora hábito arraigado em nossos políticos, insiste em se repetir a cada eleição: a cultura simplesmente não existe para eles. É uma lástima. Não agiriam assim, se soubessem (ou alguém lhes dissesse) do poder que a cultura tem para despertar consciências e sensibilidades, modificar trajetórias de vida e ser o motor mais profundo que move os seres humanos. Isso por aqui, em Pindorama, como se dizia antigamente. Porque no mundo a polarização parece que veio para ficar de modo ainda mais cruento e de novo separar judeus de árabes numa guerra que a cada momento se agrava.

Vou ficar em apenas dois exemplos de como a música pode mostrar, sem palavras, que vale a pena dialogar, que a paz é mais do que um objetivo utópico e inalcançável. De certo modo, o Duo Amal, prova isso. Dois pianistas  que tinham tudo para se odiarem juntam-se para... fazer música. De um lado, o judeu-israelense Yaron Kohlbert; de outro, o árabe-palestino Bishara Haroni. Eles se apresentaram na semana passada dentro da primorosa temporada da Tucca, num momento em que um conflito de enormes proporções no Oriente Médio está se espalhando velozmente. Os mortos contam-se já aos milhares.

É mais do que feliz coincidência, é auspicioso que na mesma semana seja lançado um CD que reforça e chama mais ainda a atenção do mundo para a necessidade de perseguir a paz. Melhor ainda, a voz musical que se levanta é a de um de nossos maiores compositores, o amazonense Cláudio Santoro.

É o 24º volume do projeto Brasil em Concerto, concebido e concretizado pelo diplomata brasileiro Gustavo de Sá, num momento nebulosíssimo para a cultura por aqui cinco anos atrás. É um raro projeto virtuoso e necessário que se afirma cada vez mais. Prevê a gravação de cem obras sinfônicas dos séculos XIX e XX. 

Voltando a Santoro. Este CD traz a música que precisamos ouvir neste momento, a que fala de paz. A peça central é a Sinfonia nº 4, composta em 1953, que ele chamou de Sinfonia da Paz e é uma de suas  criações mais conhecidas. Dedicou-a aos compositores soviéticos. Começava-se a viver a era do degelo na União Soviética, devido à morte de Stalin, em março daquele ano.

Como conta Gustavo de Sá no texto do encarte do álbum, Santoro deixou claro que esta sinfonia era uma “obra programática: o primeiro movimento representaria a luta do povo pela paz; o segundo, o contraste entre a alegria de viver e a reflexão sobre os dramas da vida; finalmente, o terceiro seria uma manifestação popular pela paz: ‘Fiz um final como se fosse uma passeata carnavalesca, alegre, o povo com bandeiras, cartazes... era essa a minha ideia, por isso que tem aquela percussão bem brasileira, bem carioca, em que eu imaginava o povo na [Avenida] Rio Branco defendendo a paz’”.

A vibrante leitura do Coro Sinfônico de Goiânia e da Filarmônica de Goiás só aumenta a admiração pelo ótimo resultado musical obtido pelo maestro Neil Thomson. Aliás, a paz já é o mote da primeira faixa, Canto de amor e paz, para orquestra de cordas, que compôs em 1950, ainda sob o impacto de sua participação, dois anos antes, no Congresso Internacional de Compositores e Críticos de Música, que aconteceu em Praga. Santoro seguiu à risca o manifesto final do congresso convocando os artistas a fugir do “subjetivismo excessivo” e evocar “expressões populares nacionais”. Ou seja, o mote era seguir o conselho do comissário Jdanov da Cultura, responsável pelo chamado realismo socialista. 

Gustavo de Sá anota que “o pacifismo é um dos grandes temas que permeiam todo o percurso artístico de Santoro, desde o imediato pós-guerra, com a inacabada Ode a Stalingrado (1947) até os oratórios Berlim, 13 de agosto (1961), composto sob o impacto da construção do Muro de Berlim, e Os estatutos do homem (1984)”. 

O álbum dedica-se a obras da década de 50, quando Santoro morou e trabalhou no Rio de Janeiro. Dava expediente como spalla da Orquestra Sinfônica Brasileira e também empunhava seu violino na Orquestra da Rádio Tupi. Um contexto “eruditopopular” que se encaixava bem em sua postura nacionalista, àquela altura.

É o caso do Choro Concertante para sax-tenor, de 1951: como se estivesse compondo e arranjando para os músicos da Tupi, só indicou ao pessoal da percussão “ritmo de baião” no final.

Emmanuele Baldini é o solista da Fantasia para violino e orquestra, obra resultante de  algumas tentativas de Santoro, nos anos 1950, de compor um concerto para o seu instrumento. Não concluiu nenhum deles, mas transformou-os nesta Fantasia, estreada por Elisa Fukuda com OSB e Santoro na regência, em 1980.

Como as demais obras da década de 50, a Sinfonia nº 6, em quatro movimentos mais curtos e concisos, completa este magnífico passeio pela música de Santoro. E o que é melhor, em interpretações de primeira qualidade. Aplausos à Filarmônica de Goiás, seu maestro Neil Thomson e aos solistas Pedro Bittencourt e Emmanuele Baldini. E, nunca é demais: o país agradece a Gustavo de Sá.

[O disco, assim como outros álbuns da coleção Música do Brasil, está disponível na Loja Clássicos; clique aqui.]

Neil Thomson e a Filarmônica de Goiás [André Saddi/Agência Cora Coralina]
Neil Thomson e a Filarmônica de Goiás [André Saddi/Agência Cora Coralina]

 

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