Com ‘Des Canyons aux Étoiles...’, Orquestra Sinfônica do Estado apresentou concerto histórico 

por Jorge Coli 11/11/2019

Quinta-feira passada, dia 7, a Orquestra Sinfônica do Estado (horrível a mania que se instalou nestas terras de chamar as orquestras por siglas. Como é digno Filarmônica de Berlim, de Nova Iorque, Sinfônica de Chicago ou de Dresden. Em compensação, como é deprimente Osesp, OSMG, OSMC, que a gente nem consegue falar! Já imaginou se você se chamasse Osusp, ou Ospa? Ospa, deuses do Olimpo! Ospa!!!???).., Mas então, como eu dizia, quinta-feira passada, dia 7, a Sinfônica do Estado apresentou um concerto histórico.

Heinz Holliger, o supremo oboísta do nosso tempo, o regente especialista na música de hoje, conduziu uma obra monumental e admirável: Des Canyons aux Étoiles..., ou em português, Dos cânions às estrelas..., composta por Olivier Messiaen, entre 1971 e 1974. Foi uma encomenda da milionária Alice Tully para comemorar o bicentenário da declaração de independência dos Estados Unidos.

Messiaen, católico devoto e fervoroso, quis ir passar alguns dias imerso nas espetaculares formações geológicas do Utah. Queria uma imersão visual e espiritual naquela paisagem grandiosa, para uma comunicação com o divino. Imersão e comunicação que deveriam inspirá-lo. E como o fizeram!

A orquestra é reduzida: apenas seis violinos, três violas, três violoncelos e um contrabaixo na secção das cordas. Os sopros são em número mais expressivo: nas madeiras, catorze instrumentos, e oito no que concerne os metais.

O mais espetacular está na percussão, que exige cinco executantes, com muitos instrumentos inusuais ou bizarros, entre eles o geofone, inventado por Messiaen para esta obra (e que ele empregaria depois em outras), um tambor dentro do qual o instrumentista agita uma grande quantidade de chumbinhos. O geofone também se tornou um favorito do compositor britânico Thomas Adès. Seu efeito sonoro evoca água despejada em cascata.

Um piano completa o conjunto.

Des Canyons aux Étoiles... é uma obra abominavelmente difícil. Há solos malabarísticos para piano, para trompa, mas, além deles, é exigido de cada músico uma qualidade de grande virtuoso. O próprio Messiaen assinalou isso, escrevendo na partitura: “todas as partes para as madeiras são difíceis”. Pavorosamente árduas, ele quis dizer.

Só as grandes, excelentes, orquestras conseguem uma interpretação de fato digna dessa partitura. Foi uma prova da qual a Sinfônica do Estado saiu-se radiosa. De modo evidente, Holliger é íntimo da obra, e sua regência é clara, precisa, levando em conta os efeitos muito expressivos, para além do controle puramente técnico. Os solistas foram de altíssima categoria, com a palma para o fenomenal Luiz Garcia, que, no solo de trompa “Appel interstellaire”, chegou ao sublime pela perfeição técnica e musicalidade.

Obra rara e magnífica, com intérpretes admiráveis, levou o público a lotar a Sala São Paulo, em que não cabia mais um alfinete sequer, certo? Erradíssimo! O incompreensível conservadorismo dos frequentadores deixou vazia as poltronas pela metade; e, depois do intervalo, pela metade da metade! Comentário de uma vizinha: “Preferiram ir comer pizza...”.

Uma tristeza. Sobretudo porque Des Canyons aux Étoiles... é variada, fascinante, cheia de impactos, e não deixa lugar para o tédio.

Osesp apresenta ‘Des Canyon aus Étoiles’, de Messiaen [Revista CONCERTO / Jorge Coli]
Plateia rarefeita em ‘Des Canyon aus Étoiles’, de Messiaen, na Sala São Paulo [Revista CONCERTO / Jorge Coli]

E agora, algumas observações sobre essa composição, que admiro sem restrições, mas que podem escandalizar alguns ortodoxos admiradores de Messiaen. Assim, aviso: fanáticos bem pensantes não devem prosseguir a leitura.

Primeiro: Des Canyons aux Étoiles... é um poema sinfônico, o mais grandioso de todos, mas um poema sinfônico, ainda assim, com um programa redigido pelo compositor, programa que precede a partitura. Cada seção da obra tem um título e uma explicação precisa.

As análises consagradas a ele se encaminham em duas vertentes. Ou concentram-se num processo formal, descritivo; ou entram pelas sugestões genéticas reveladas pelo próprio autor: a paisagem, os pássaros, o colorido, a espiritualidade.

Creio que, a elas, podem acrescentar-se sugestões de compreensão por meio de afinidades não convencionais.

Des Canyons aux Étoiles... possui um clima dramático que evoca a música escrita para os films noirs de Hollywood. Essas composições poderiam alimentar os programas de concertos com esplêndidas suítes, se a cultura dos maestros não fosse, em geral, estreita. 

Christopher Palmer, estudioso da música para o cinema norte-americano, lembra que os films noirs impuseram a redução da orquestra, com instrumentação seletiva, destinada à intensidade expressiva. Jerry Goldsmith, para o neo-noir Chinatown, de Roman Polanski (filme que é exato contemporâneo de Des Canyons aux Étoiles...), empregou cordas, quatro pianos, quatro harpas, dois percussionistas e solo para trompete. Richard R. Ness, outro especialista da música no film noir, insiste no fato de que seus compositores foram buscar inspiração no mundo da música atonal, serial, nas dissonâncias, nas fragmentações, no bruitismo, ou seja, no mundo sonoro criado pela modernidade e pelo experimentalismo do século XX.

A essa convergência, acrescenta-se o fato de que Messiaen construiu uma música de efeitos. O eolífone, ou “máquina de vento”, grande cilindro recoberto de seda ou outro tecido que, ao girar, permite imitar o som da ventania, bem como a “folha de trovão”, uma placa de metal que, ao ser sacudida, produz o estrondo que simula as tempestades, de hábito, ficam nas coxias, para dramatizar os aguaceiros das óperas, como no último ato do Rigoletto. Ora, na obra de Messiaen, essa função teatral toma evidência visível e sonora, exposta que está aos olhares. Por falar nisso, Des Canyons aux Étoiles... tem natureza de performance, no sentido teatral, tanto sonoro quanto visual: basta lembrar os deslocamentos exigidos do trompista em seu solo.

Haveria muito mais a dizer: Des Canyons aux Étoiles... e a tonalidade; as raízes românticas de Des Canyons aux Étoiles...; Des Canyons aux Étoiles... e esse outro sublime paisagista sonoro que é ... Puccini!   (ouçam o final “Scarpiano” da seção “Bryce Canyon et les rochers rouge-orange”, final da primeira parte).

Mas já escrevi muita bobagem, e paro, agradecendo a paciência do leitor que chegou até aqui.

Leia mais
Revista CONCERTO
Fé na natureza, por João Marcos Coelho
Notícias Heinz Holliger inicia série de apresentações com a Osesp
Crítica O gênio de Messiaen em apresentação memorável da Osesp, por Nelson Rubens Kunze
Notícias Mischa Maisky e orquestra eslovena tocam na temporada do Mozarteum
Colunistas Leia outros textos de Jorge Coli

Curtir