Duo Siqueira Lima: precisão, ginga e senso de estilo

O presidente Juscelino Kubitschek celebrizou-se pelo slogan 50 anos em 5 e, deste ponto de vista, pode-se dizer que o compositor André Mehmari está vivendo o ano mais jusceliniano de sua carreira. Ele nem chegou aos 50, está com 46, mas seus feitos de 2023 são mesmo impressionantes: entre turnês internacionais e gravações, houve a estreia da ópera O machete, baseada em Machado de Assis, no Theatro São Pedro, em São Paulo, em junho; em dezembro, está marcada a primeira audição de um concerto para violoncelo por ninguém menos do que o icônico Antonio Meneses, com a Filarmônica de Minas Gerais; e, no meio do caminho, no último domingo, dia 8, na Sala São Paulo, veio um concerto para dois violões escrito expressamente para o Duo Siqueira Lima.

A história já foi contada várias vezes, mas não custa repetir: a uruguaia Cecilia Siqueira e o mineiro Fernando Lima conheceram-se no II Concurso Internacional de Violão Pró-Música Sesc de Caxias do Sul (RS), em 2001, dividindo o primeiro lugar. Nasceu ali um casal e um duo superlativo, unindo virtuosismo técnico e musicalidade exuberante.

Para gravar um álbum com orquestra, eles escolheram resgatar o Concerto nº 3 para dois violões, com flauta, tímpanos e orquestra de cordas, de Radamés Gnattali (1906-1988). Trata-se de uma segunda versão, feita em 1981 para o espetacular Duo Assad, de uma obra escrita para apenas um violão solista, em 1957, e originalmente dedicada a José Menezes. Sérgio e Odair Assad jamais chegaram a registrar profissionalmente a peça e, assim, a gravação do Duo Siqueira Lima, com a Orquestra Gru Sinfônica, sob a batuta de Emiliano Patarra, tornou-se o primeiro registro profissional da obra.

Com uma programação imaginativa, Patarra vem inserindo de forma inteligente as orquestras de Guarulhos (há uma adulta e uma jovem) na vida musical paulista. A generosa acústica da Sala São Paulo abraçou com carinho a Gru Sinfônica (a orquestra adulta), a amplificação dos solistas provida por Mehmari (sim, ele também microfonou os violões do concerto) funcionou, e a brejeira sonoridade de Radamés fez o sol penetrar na enevoada manhã paulistana.

Se a obra de Gnattali pode ser classificada como um concertino neoclássico, a de Mehmari é um pouco mais alentada, tanto na instrumentação, quanto no escopo. Ele urdiu uma peça contínua, em sete seções, que passeiam por diversos gêneros nacionais

Após a primeira parte, veio talvez o momento mais emocionante do dia. O jovem flautista Jônatas Monteiro de Oliveira Silva, que participou da gravação do disco que estava sendo lançado na Sala São Paulo, foi brutalmente assassinado em julho deste ano. Patarra não apenas dedicou a apresentação a Jônatas, como ainda chamou seus pais ao palco, para receberem uma homenagem da orquestra e o carinho do público.

Bem, para complementar um concerto (e um álbum) que começa com Gnattali, a escolha mais natural é uma obra de André Mehmari, herdeiro natural de Radamés na abolição orgânica e espontânea das fronteiras entre o popular e o erudito. Dois violões em concerto foi gravado em junho e julho deste ano no paradisíaco Estúdio Monteverdi, que o músico mantém em Mairiporã, e ele mesmo assinou produção musical, engenharia de som, mixagem, masterização – e compôs para a ocasião seus Portais brasileiros 4 – a saga dos violões.

Se a obra de Gnattali pode ser classificada como um concertino neoclássico em três movimentos, a de Mehmari é um pouco mais alentada, tanto na instrumentação, quanto no escopo. Adicionando madeiras e par de trompas, ele urdiu uma peça contínua, em sete seções, que passeiam por diversos gêneros nacionais, do corta-jaca à valsa de esquina, incluindo choro, baião e polca.

Com uma orquestração cuja inventividade se revela já na sonoridade “etérea” e evocativa da introdução, Mehmari transforma o casal de solistas em rapsodos empenhados em uma jornada virtuosística e variegada por paisagens musicais contrastantes, do rural roseano ao urbano carioca. Os afetos vão do lirismo mais desbragado a um humor stravinskiano, sem deixar de lado os intricados jogos rítmicos característicos da escrita mehmariana. Com precisão, ginga, senso de estilo e, sobretudo, convicção, o Duo Siqueira Lima construiu uma interpretação encantadora, secundado pelo acompanhamento atento e cuidadoso de Patarra e seus comandados.

Como bis, o duo executou sua deliciosa versão de um standard de Hermeto Pascoal: Bebê, talvez em homenagem aos indefectíveis gritinhos infantis que tamanha singeleza conferem à paisagem sonora dos concertos matinais da Sala São Paulo. Enfim, o concerto foi tão prazeroso que não vejo a hora de ouvir o disco!

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O Duo Siqueira Lima e a GRU Sinfônica durante a passagem de som antes do concerto na Sala São Paulo [Divulgação]
O Duo Siqueira Lima e a GRU Sinfônica durante a passagem de som antes do concerto na Sala São Paulo [Divulgação]

 

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