Em bom concerto, Osusp estreia obras de Ficarelli e Escobar

por Nelson Rubens Kunze 21/06/2019

A Osusp apresentou no sábado dia 15 de junho, na Sala São Paulo, mais um interessante programa de sua temporada 2019, a primeira sob a direção artística do fagotista e professor Fabio Cury. O concerto teve regência de Ricardo Bologna, professor do departamento de música da USP e timpanista solo da Osesp, um músico que tem seu trabalho e projetos pessoais fortemente associados à música de nossos dias. Totalmente dedicado à música brasileira, o repertório trouxe obras dos “conhecidos” Camargo Guarnieri (1907-1993) e Heitor Villa-Lobos (1887-1959) e duas estreias de compositores de nossos dias: Mario Ficarelli, nascido em 1935 e falecido em 2014, e Aylton Escobar, de 76 anos, presente ao espetáculo (ambos foram durante décadas professores do departamento de música da USP). Pela inteligência na escolha das obras e por sua disposição no programa, o concerto funcionou muito bem.

A apresentação se iniciou com a obra Encantamento, que Camargo Guarnieri arranjou para orquestra em 1941 a partir de um dueto para violino e piano. É uma obra breve, de uns 7 minutos. Após uma introdução de caráter onírico, com bonitos solos nas madeiras e metais, Encantamento segue para uma dança lenta que progride ao ponto culminante, um grande tutti orquestral. O clima inicial é retomado até que a trompa introduz um tranquilo epílogo.

A segunda peça do programa foi o Concerto para piano, percussão e orquestra de Mario Ficarelli, em primeira audição mundial, que teve como solistas a pianista Karin Fernandes e o Grupu, Grupo de Percussão da Unicamp, com direção de Fernando Hashimoto. Estruturado em 3 movimentos, o concerto tem uma força rítmica de grande energia e vitalidade. A percussão estabelece o caráter da obra, contaminando a orquestra e o piano – que é explorado justamente em seus recursos percussivos e tem papel condutor em diversas passagens. A composição é rica em invenções tímbricas e explora com competência o potencial orquestral. No terceiro movimento, o motor rítmico é interrompido por uma cadência do piano, para retornar e conduzir a música à fermata final, que, qual a parada após longa corrida, talvez seja o único acorde de longa duração da peça – chegamos!

Osusp [Revista CONCERTO]
Osusp [Revista CONCERTO]

Seguiu-se a obra de Aylton Escobar intitulada Lírica esquecida em 1960 (2 fragmentos irônicos), uma encomenda da Osusp apresentada também em primeira audição mundial. Ela é baseada justamente em alguns esboços que o compositor fez naqueles anos. Na Revista CONCERTO, em entrevista a Leonardo Martinelli, Aylton explica que “a década de 1960 não foi das décadas das mais entusiásticas, embora escondesse bons momentos para criatividade e rebeldia. Como experiência pessoal, foi uma época muito assustadora, cheia de contradições. [...] Foi uma época em que tive a alegria de ser premiado e reconhecido como artista, mas quando também testemunhei os horrores da repressão, de amigos presos e desaparecidos”.

A peça está composta em duas partes, que levam os títulos O sorriso fosco e O poema tosco. São dois breves comentários, escritos em uma linguagem de grande apuro musical. Após um primeiro segmento de caráter mais etéreo e fragmentado, segue-se um trecho expansivo que leva a solos no trombone, na flauta, no violino solo do spalla. A escrita de Escobar é estudada e cuidadosa, e toca por sua poesia e radical musicalidade.

A noite terminou com a Bachiana 4 de Villa-Lobos, originalmente escrita para piano e orquestrada em 1942. A obra abre com o famoso Prelúdio, que, talvez, junto com a melodia de soprano da Bachiana 5, seja a música “clássica” brasileira mais conhecida no mundo. Ah, sim, claro, tem também o Trenzinho do caipira...

Nem sempre um programa temático ou conceitual dá certo. Aqui, funcionou muito bem. Duas obras de dois de nossos mais finos compositores emolduradas por Guarnieri e Villa-Lobos, em uma emocionante viagem sonora que evidencia a rica multiplicidade da música brasileira. Claro que isso só foi possível graças à boa performance da Osusp, que, dirigida por Bologna, tocou com convicção e equilíbrio, com solos no geral de ótima qualidade. Também foi igualmente competente a atuação do grupo de percussão de Campinas, liderado por Fernando Hashimoto, bem como a da ótima pianista Karin Fernandes.

Com uma direção artística criteriosa, que tem buscado novos repertórios e novas parcerias e tem fortalecido as ligações da orquestra com o departamento de música, a Osusp atravessa uma ótima fase, o que tem sido reconhecido também pelo público, que compareceu em bom número à Sala São Paulo.

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