Em Manaus, uma maratona de bel canto em leitura com foco e energia

Maestro Marcelo de Jesus merece todos os créditos por uma leitura límpida, precisa, atenta aos cantores e completamente imersa no estilo de Anna Bolena, de Donizetti

MANAUS – Sábado foi dia de maratona de bel canto no 25º Festival Amazonas de Ópera, em Manaus. Anna Bolena (1830), de Donizetti, foi executada na íntegra, com todas suas árias, cabalettas e repetições, em um espetáculo de mais de três horas de duração.

No Brasil, o título não era feito desde a década de 1840. Não sei se, naquela época, houve cortes – ou se os melômanos que se dividiam entre Candiani e Delmastro simplesmente se esbaldaram ao desfrutar cada minuto de suas divas no palco.

O fato é que, ao longo dos séculos XX e XXI, o gosto mudou. Se, no célebre revival da ópera por Maria Callas, sob a direção do mítico Luchino Visconti, os cortes foram substanciais, produções mais recentes tendem a restaurar a integridade da partitura.

Em uma apresentação desta duração, roncos e fugas na plateia parecem ser quase inevitáveis se o nível da performance não for dos mais elevados. E, em Manaus, o maestro Marcelo de Jesus merece todos os créditos por uma leitura límpida, precisa, atenta aos cantores e completamente imersa no estilo da obra. Para quem não visitava o Amazonas há 11 anos, foi prazeroso observar o amadurecimento de Marcelo, mantendo o foco e energia a cada um dos mais de 180 minutos da récita.

E a Amazonas Filarmônica – uma das melhores orquestras de ópera do país – respondeu de forma brilhante. Devido à realização em Manaus da 16ª conferência da OLA Ópera Latinoamérica, entidade internacional que congrega teatros ibero-americanos), os quatro títulos do festival subiram ao palco do Teatro Amazonas em dias consecutivos. Muito se falou do desafio de logística que é revezar essas produções em uma casa sem espaço nas coxias. Mas vale sublinhar também no que significa, para a orquestra, interpretar seguidamente quatro partituras em estilo absolutamente diferentes, sob as batutas de diversos regentes. A Filarmônica passou galhardamente nesse teste de resistência e versatilidade.

Sávio Sperandio e Luisa Francesconi em cena de 'Anna Bolena' [Divulgação/Saleyna Borges]
Sávio Sperandio e Luisa Francesconi em cena de 'Anna Bolena' [Divulgação/Saleyna Borges]

Callas foi fundamental para a reentrada de Anna Bolena no repertório, e a produção manauara foi pensada como uma homenagem ao centenário da diva grega. Durante a abertura, o diretor André Heller-Lopes projetou imagens do célebre triângulo amoroso envolvendo Callas, Jacqueline Kennedy e Aristóteles Onassis. Mas resistiu a fazer uma mera transposição desta trama para a ópera. Basicamente, Heller-Lopes ambientou Bolena em seu tempo histórico, deixando os figurinos traçarem a relação entre os personagens da ópera e a intriga mundana das celebridades do século XX. Tatiana Carlos, Luisa Francesconi e Sávio Sperandio apareciam caracterizados ora como Bolena-Seymour-Henrique, ora como Callas-Jacqueline-Onassis, o que funcionou bem melhor na segunda metade do espetáculo do que na primeira, quando os panos pendurados que simulavam o Scala de Milão pareciam algo precários para quem estava sentado na plateia.

O público do bel canto sempre foi ao teatro para ouvir vozes, e a de Tatiana Carlos, que encarnou a protagonista, tem um vibrato bastante peculiar, que divide opiniões de forma irreconciliável: quem o rejeita dificilmente terá tolerância para ouvir seus agudos, coloraturas e sólido registro de peito. Francesconi está completamente em casa nesse tipo de repertório, fraseando com a elegância habitual, e a boa descoberta foi o argentino Francisco Brito, um Percy com todas as características de um bom tenor ligeiro. Dentre os papéis menores, vale destacar o Smeton da mezzo Juliana Taino, de vocalidade homogênea e entrega cênica.

Sávio Sperandio fica para o fim, porque sua performance foi um espetáculo à parte. Como ele fazia o papel do rei Henrique VIII, o adjetivo que se impõe para qualificar sua atuação é majestosa. Sim, Henrique é um monstro calculista, que quer matar a todo custo sua esposa, Bolena, para ter o caminho livre para se casar com Seymour. Mas a atuação de Sperandio é tão cativante que a gente torce para o vilão; queremos que ele permaneça em cena o máximo de tempo possível, e nos entristecemos quando aquele vozeirão imenso, colorido e bem matizado se retira do palco. Manaus já é uma cidade quente e, com Sávio no palco, essa temperatura ascendia aos mais incandescentes extremos. Se eu fosse um dos representantes de teatro da OLA presentes à récita, contrataria imediatamente o baixo para ir cantar na minha cidade.

(O jornalista Irineu Franco Perpetuo viajou a Manaus e assistiu à ópera a convite do Festival Amazonas de Ópera.)

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