“Nossa Senhora!” A exclamação de voz feminina que se fez ouvir na cadência do primeiro movimento do Concerto para violino de Brahms, logo após um pizzicato especialmente sonoro de Guido Sant’Anna, traduziu a estupefação do público que foi à Sala São Paulo na última terça-feira, dia 25. A música erudita brasileira ganhou mais um ídolo.
Originalmente, o solista das apresentações da Filarmônica de Câmara Alemã de Bremen na série de assinaturas da Sociedade de Cultura Artística seria o renomado violinista alemão Christian Tetzlaff. Este, contudo, não pôde participar da turnê. E a solução “caseira” foi chamar Guido, pupilo de Elisa Fukuda e bolsista da Cultura Artística de 2012 – e que, exatamente há um mês, fez história como o primeiro brasileiro a vencer um grande concurso internacional de violino: o Fritz Kreisler, em Viena.
O público paulistano tinha boas lembranças da orquestra alemã devido a um mesmerizante ciclo integral das sinfonias de Beethoven, em 2013, com quatro apresentações, divididas entre a Sala São Paulo e o Theatro Municipal, sob a batuta do estoniano Paavo Järvi. Dois anos mais tarde, voltou com o violinista Pekka Kuusisto, para um programa que incluía Mozart e o fascinante concerto do compositor sueco contemporâneo Magnus Lindberg.
Ontem, na Sinfonia Simples, obra de juventude do britânico Benjamin Britten que abriu a apresentação, atuando sem regente, sob direção do spalla Glenn Christensen, o grupo reafirmou as qualidades de um fazer musical que traz à prática orquestral as melhores qualidades da música de câmara, com um meticuloso trabalho de detalhes, aliando refinamento e intensidade dramática.
Mas aí veio Guido, usando a mesma camisa vermelha com que tocou em Viena, e empunhando não o Stradivarius daquela oportunidade, porém um belo Vuillaume gentilmente cedido pelo luthier Marcel Richters. E ele entrou em campo com o jogo ganho: antes de soar uma nota sequer, foi acolhido pela Sala com uma ovação para lá de calorosa, como só me lembro de Nelson Freire receber antes de suas apresentações.
Quis o destino que a peça que Tetzlaff deveria solar no Brasil fosse o mesmíssimo concerto de Brahms que Guido executou na final do Fritz Kreisler no venerável Musikverein, com a Orquestra Sinfônica da Rádio de Viena, regida por Alexander Joel. E quem havia se arrepiado ao acompanhar a transmissão por streaming do feito histórico do violinista de 17 anos agora pôde se emocionar de vez.
Não só porque uma apresentação ao vivo supera o que podemos experimentar por meios eletrônicos, mas pela soberba qualidade do diálogo musical entre Guido e orquestra. O concerto de Brahms é um Himalaia do ponto de vista de dificuldade técnica, mas seu encanto passa sobretudo pela integração entre solista e orquestra. Já se disse que as obras orquestrais do compositor são música de câmara em dimensões ampliadas, e o violino de Guido travou uma conversa do mais alto nível com aqueles que não eram seus meros acompanhantes, e sim parceiros de palco.
Para quem ouviu o solista pela primeira vez em 2014, quando, com apenas nove anos, ele chegou à final de Prelúdio, o show de calouros de música clássica comandado pelo maestro Júlio Medaglia na TV Cultura, a performance de Guido foi simplesmente um assombro. Sim, naquela época ele já apresentava resultados de excelência incompatível com sua pouca idade. Guido prometia muito – e entregou muito mais. Não há como não ficar embasbacado com seu amadurecimento. Ele tocou um dos concertos mais “adultos” de todo o repertório não apenas com o “fogo” que se espera da juventude, porém com uma consistência que profissionais com o dobro ou o triplo de seus anos precisam labutar muito para atingir. Técnica transcendental, afinação impecável, e uma concepção que fez caírem todos os queixos presentes à antiga Estação Júlio Prestes. E, para quem tivesse eventuais dúvidas a respeito de seu virtuosismo, um bis de forte carga simbólica: do compositor que dá nome ao concurso que ele venceu, Fritz Kreisler, o Recitativo e scherzo para violino solo – uma espécie de compêndio de proezas mecânicas.
Confesso que, se ele estivesse se apresentando com uma orquestra menos interessante do que a de Bremen, eu teria voltado para casa no intervalo. Afinal, na segunda parte, viria Mozart: um compositor cuja genialidade é indiscutível mas que, porém, costuma ser massacrado na Sala São Paulo por performances burocráticas e anacrônicas.
Mas Bremen, afinal, é a terra dos músicos que inspiraram o célebre conto dos Irmãos Grimm que no Brasil conhecemos como Os Saltimbancos, e esses saltimbancos do terceiro milênio entregaram uma Sinfonia nº 35 – “Praga” cheia de brio, brilho e teatralidade. O jogo entre os variegados e abruptamente contrastantes planos de dinâmica obtidos pela orquestra estruturou um discurso musical arrebatado e empolgante, de acentos que pareciam antecipar a retórica beethoveniana.
E, para reforçar essa linha genealógica, e matar as saudades dos que presenciáramos o antológico ciclo de Beethoven de nove anos atrás, eles ainda nos brindaram, no bis, com o final da primeira sinfonia do compositor de Bonn. Para uma noite histórica, um arremate empolgante.
[Guido Sant'Anna volta nesta quarta-feira ao palco da Sala São Paulo; veja mais detalhes no Roteiro do Site CONCERTO]
Leia também
Notícias Ópera em Pauta destaca importância econômica e conexão com educação na atividade lírica
Notícias Carla Caramujo interpreta ‘Cartas Portuguesas’, de Ripper, com a Petrobras Sinfônica
Notícias Modernismo é eixo de debates e concertos no Theatro São Pedro
Notícias Festival de Música Erudita do Espírito Santo anuncia nova edição, que terá o tempo como tema
Crítica Um olhar duro sobre o Brasil de hoje, por meio da ópera, por Camila Fresca
É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.
Comentários
Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.