A elegância de fraseado de Bell teve a perfeita contrapartida no refinamento do pianista Peter Dugan em recital no Teatro Cultura Artística
A temporada da Sociedade de Cultura Artística deste ano é uma daquelas cordilheiras feitas de montanhas altíssimas, dentre as quais escolher o ponto culminante é virtualmente impossível. A cristalina e aconchegante acústica da sala renovada vem agasalhando artistas internacionais de primeiríssima linha, que compartilham sua excelência com o público de forma generosa em condições muito especiais de intimismo e acolhimento. Dentre eles, o mais recente Himalaia foi o violinista norte-americano Joshua Bell, que fechou o feriado prolongado paulistano na fim da tarde do último domingo, dia 17 (ele volta ao palco hoje, 18, e, na terça, 19, apresenta-se no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, pela série da Dellarte).
Custa crer que aquele jovem que esteve por aqui pela primeira vez em 1996 está prestes a completar 57 anos de idade. É tentador imaginar que este Dorian Gray do violino teria feito uma espécie de pacto fáustico que lhe assegurou, além da eterna juventude, um domínio transcendental do instrumento. Nessas três décadas, São Paulo tem tido o privilégio de ser visitada pelo astro de Indiana inúmeras vezes – a última delas, no ano passado, quando ele executou um Tchaikóvski assombroso com a Academy of St. Martin in the Fields (deixei registrado meu pasmo aqui). E a passagem do tempo parece só ter feito bem a Bell. A perfeição apolínea segue intacta. E a maturidade faz com que ele nos revele – e compartilhe conosco – as profundidades encontradas em cada partitura que resolve interpretar.
O recital começou com aquela que talvez seja a mais especial das sonatas de Mozart para piano e violino – a de K. 304, em mi menor. Tonalidades menores, no século XVIII, normalmente estão associadas a drama e lamento, e é difícil não ler a obra como um pranto pela mãe que o compositor de 22 anos acabara de perder. A elegância de fraseado de Bell teve a perfeita contrapartida no refinamento do pianista Peter Dugan que, ao longo da tarde, iria se revelar não um mero acompanhador, porém um autêntico parceiro de música de câmara, um interlocutor privilegiado e ativo do violino de Joshua.
Perfeitamente balanceado no que tange ao equilíbrio sonoro entre os instrumentos, o duo Bell-Dugan mostrou-se também entrosado quanto à concepção de sonoridade
Isso se evidenciou de forma particular na deslumbrante Fantasia em dó maior D. 934, uma das derradeiras peças de Schubert, escrita em dezembro de 1827 e estreada em janeiro do ano da prematura morte do compositor – 1828. Trata-se de sete partes executadas de forma contínua. Canto e dança sempre informam a música de Schubert e, neste caso, o lied Sei mir gegrüsst (Eu te saúdo, D. 741, com texto de Friedrich Rückert; ouça aqui) fornece o tema das variações que constituem a terceira seção da peça. Começando de forma muito intimista (com pianíssimos que devemos agradecer tanto aos artistas por executarem, quanto à sala por permitir se fazerem ouvir), a obra é um caleidoscópio de afetos, em que ambiguidades maior-menor e modulações coloridas convivem com elevadas demandas técnicas – para colocar em relevo o talento de Josef Slavík, o violinista que tocou em sua primeira audição, considerado à época um “sucessor de Paganini” (se a obra é menos tocada do que deveria, a “culpa” é de sua extrema dificuldade técnica, que segue desafiadora dois séculos após sua concepção). O material musical é compartilhado de forma equânime entre violino e piano, e as diversas passagens em que Bell cedia o protagonismo a Dugan foram executadas por este com o devido brilho e destreza.
No intervalo do concerto, o clima no Cultura Artística já era de encantamento. Animadas, as pessoas abordavam-se não para checarem a veracidade de suas opiniões, mas como que para comprovarem que aquilo estava ocorrendo de fato – à semelhança de alguém que se belisca para verificar se não está sonhando.
Perfeitamente balanceado no que tange ao equilíbrio sonoro entre os instrumentos, o duo Bell-Dugan mostrou-se também entrosado quanto à concepção de sonoridade. Assim, quando chegou a hora da Sonata nº 1 – em tributo ao centenário de morte de seu autor, Gabriel Fauré –, era quase como se outro par de intérpretes tivesse subido ao palco. Dugan “abriu” o som do seu teclado, e Bell correspondeu com um uso maior do vibrato – sem, contudo, qualquer exagero. O melodismo sedutor e o jogo harmônico imaginativo de Fauré se fizeram presentes com muita verve, em uma interpretação idiomática e inebriante. Pela primeira vez, soou-me plausível a teoria de que essa obra tenha sido a inspiração da célebre sonata do compositor fictício Vinteuil que desempenha um papel tão decisivo na saga Em Busca do Tempo Perdido, de Proust.
Com muito bom humor, Josua Bell anunciou no palco os três itens de bis. Primeiro veio a Ballade da terceira sonata para violino solo do belga Eugène Ysaÿe, em interpretação imaculada, que equivaleu a uma master class sobre corda dupla. Depois, Dugan voltou ao palco para acompanhá-lo na lírica transcrição de Nathan Milstein para violino e piano do Noturno nº 20, de Chopin. E, para quem sentia falta de fogos de artifício, veio uma execução esfuziante do Scherzo-Tarantelle Op. 18, de Wieniawski.
Do que é bom a gente nunca enjoa. Se Joshua Bell quiser vir a São Paulo todo ano, não irei me queixar.
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