‘Matraga’ é retrato estético do sertão mineiro

por Nelson Rubens Kunze 27/10/2023

Além de um belo e bem-acabado espetáculo, Matraga tem o mérito de tematizar a cultura mineira e brasileira, ampliando, por meio da arte lírica, a percepção de nossa identidade

Estreou na quarta-feira, dia 25 de outubro, no Palácio das Artes em Belo Horizonte, a nova produção de Matraga, ópera em 3 atos de Rufo Herrera baseada no conto “A hora e vez de Augusto Matraga”, de Guimarães Rosa. Nem o temporal que desabou sobre Belo Horizonte a uma hora do início do espetáculo espantou o público, que lotou os 1.700 lugares da casa.

“A hora e vez de Augusto Matraga” conta a história de um homem do sertão, valentão e rude, que, após quase ser morto por jagunços igualmente valentões e rudes, passa por uma transformação religiosa e morre defendendo um ancião inocente. O conto está no livro “Sagarana”, primeira obra-prima de Guimarães Rosa, publicado em 1946. Ele já é escrito na linguagem que consagrou Rosa como um dos maiores e mais originais escritores brasileiros, ao reinventar o idioma e transcender os limites da prosa regionalista. Sua escrita recria a fala popular, é lapidar, inventiva, direta, forte e ao mesmo tempo profundamente poética.

A ópera Matraga tem um acentuado viés teatral, dado já pela composição de Rufo Herrera, em que alguns dos principais personagens são atores ou bailarinos (e não cantores) – o próprio Augusto Matraga (Leonardo Fernandes), Tião da Tereza (Guilherme Théo), Major Consilva (Ivan Sodré), Mimita (as bailarinas Maria Campos e Eliatrice Gischewski), Sariema (a bailarina Isadora Brandão) e o ancião (Luciano Luppi). Já os cantores que participam da história são a mezzo soprano Edinéia de Oliveira, que fez a Mãe Quitéria, a soprano Edna d’Oliveira, no papel de Dionóra, o tenor Geilson Santos, como Quim, o tenor Flavio Leite, que interpretou Joãozinho Bem-Bem, e o baixo Cristiano Rocha, que fez Ovídio.

Na música de Rufo Herrera, a orquestra muitas vezes pontua e ilustra a narrativa – especialmente quando faz fundo às falas dos atores. Outras vezes, serve de condução melódica e harmônica para o coro ou para os cantores solistas. Partes rítmicas e instrumentos de percussão criam ambientações sonoras envolventes e é especialmente interessante e dinâmica a escrita para o coro e para as passagens do balé. 

A encenação da ópera Matraga produzida pela Fundação Clóvis Salgado foi concebida e é dirigida por Rita Clemente, que apresenta o enredo em um ambiente de luzes claras. Fundos de cores cheias e intensas, algumas rampas, uma árvore seca estilizada e um grande cavalo articulado de madeira marcam o cenário, no todo sóbrio e muito bonito (cenografia de Miriam Menezes e iluminação de Danilo Manzi). Projeções com desenhos em estilo de cordel ilustram cenas, tudo de modo refinado e de bom gosto. O universo do sertão em toda a sua grandeza e crueza, da violência dos jagunços à religiosidade e ao misticismo, tudo é estetizado nas cenas, na dança e na música.

A ópera conta com um narrador (o ator Gilson Barros) que, acompanhado por um violeiro (Chico Lobo), relata sobre o conto de Guimarães Rosa e os seus personagens. 

Com essas opções – valorizando uma dimensão mais transversal dos acontecimentos em um cenário estilizado esteticamente –, perdeu-se algo do drama pessoal e do caráter visceral do texto contundente de Guimarães Rosa. Em entrevista à Revista CONCERTO, a diretora Clemente expõe mesmo a ideia de uma visão mais abrangente e contextual, em detrimento de construções dramáticas: “A música é sofisticadamente criada para dar voz à cena. Por isso opto pelo diálogo entre os vocabulários de cena e não pela ‘dramatização’ – essa ideia equivocada sobre teatro. O que rege a interpretação em Matraga é a circunstância, o que rege a encenação é a circunstância, e o que me guia é criar diálogo em tudo, com tudo.”

No geral, foi excelente a junção e interação dos atores, dos cantores, dos bailarinos e do coro, em uma movimentação cênica muito fluente. O Coral Lírico de Minas Gerais (preparado por Hernán Sanchez) e a Cia. de Dança Palácio das Artes são parte determinante na condução da história e atuaram com competência em algumas das passagens mais inspiradas da partitura. Concorreram para o bom resultado do conjunto coreografias adequadas (direção Alex Soares) e bonitos figurinos (Sayonara Lopes).

Foi bem também a Orquestra Sinfônica de Minas Gerais que, sob a condução de maestra Ligia Amadio, diretora musical da produção, exibiu boa sonoridade e elã musical.

A montagem de Matraga é também uma homenagem aos 90 anos do compositor Rufo Herrera, nascido na Argentina, mas radicado no Brasil desde a década de 1960, com uma importante atividade em Minas Gerais. Além de um belo e bem-acabado espetáculo, Matraga tem o mérito de tematizar a cultura mineira e brasileira, ampliando, por meio da arte lírica, a percepção de nossa identidade. 

Serviço: A ópera Matraga ainda terá apresentações nos dias 27 e 28 de outubro, às 20h30, e dia 29 de outubro, às 19h.

[Nelson Rubens Kunze viajou a Belo Horizonte e assistiu à ópera Matraga a convite da Fundação Clóvis Salgado.]

Leia mais
Revista CONCERTO 
“Duro, doido e sem detença”, por Nelson Rubens Kunze

Leia também
Notícias 
Luiz de Godoy assume posto de professor em Hamburgo 
Notícias Tucca anuncia temporada 2024 com Joyce Di Donato e coletivo D-Composed
Notícias Festival Artes Vertentes divulga programação de sua nova edição
Notícias Sala Cecília Meireles realiza Programa de Inovação na Música de Concerto
 

Veja abaixo imagens de algumas cenas da estreia de Matraga (todas as fotos são de Guto Muniz, divulgação FCS)

Cena da ópera ‘Matraga’, produção da Fundação Clóvis Salgado (divulgação, Guto Muniz)

Cena da ópera ‘Matraga’, produção da Fundação Clóvis Salgado (divulgação, Guto Muniz)

Cena da ópera ‘Matraga’, produção da Fundação Clóvis Salgado (divulgação, Guto Muniz)

Cena da ópera ‘Matraga’, produção da Fundação Clóvis Salgado (divulgação, Guto Muniz)

 

Curtir

Comentários

Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.

É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.