Além de um belo e bem-acabado espetáculo, Matraga tem o mérito de tematizar a cultura mineira e brasileira, ampliando, por meio da arte lírica, a percepção de nossa identidade
Estreou na quarta-feira, dia 25 de outubro, no Palácio das Artes em Belo Horizonte, a nova produção de Matraga, ópera em 3 atos de Rufo Herrera baseada no conto “A hora e vez de Augusto Matraga”, de Guimarães Rosa. Nem o temporal que desabou sobre Belo Horizonte a uma hora do início do espetáculo espantou o público, que lotou os 1.700 lugares da casa.
“A hora e vez de Augusto Matraga” conta a história de um homem do sertão, valentão e rude, que, após quase ser morto por jagunços igualmente valentões e rudes, passa por uma transformação religiosa e morre defendendo um ancião inocente. O conto está no livro “Sagarana”, primeira obra-prima de Guimarães Rosa, publicado em 1946. Ele já é escrito na linguagem que consagrou Rosa como um dos maiores e mais originais escritores brasileiros, ao reinventar o idioma e transcender os limites da prosa regionalista. Sua escrita recria a fala popular, é lapidar, inventiva, direta, forte e ao mesmo tempo profundamente poética.
A ópera Matraga tem um acentuado viés teatral, dado já pela composição de Rufo Herrera, em que alguns dos principais personagens são atores ou bailarinos (e não cantores) – o próprio Augusto Matraga (Leonardo Fernandes), Tião da Tereza (Guilherme Théo), Major Consilva (Ivan Sodré), Mimita (as bailarinas Maria Campos e Eliatrice Gischewski), Sariema (a bailarina Isadora Brandão) e o ancião (Luciano Luppi). Já os cantores que participam da história são a mezzo soprano Edinéia de Oliveira, que fez a Mãe Quitéria, a soprano Edna d’Oliveira, no papel de Dionóra, o tenor Geilson Santos, como Quim, o tenor Flavio Leite, que interpretou Joãozinho Bem-Bem, e o baixo Cristiano Rocha, que fez Ovídio.
Na música de Rufo Herrera, a orquestra muitas vezes pontua e ilustra a narrativa – especialmente quando faz fundo às falas dos atores. Outras vezes, serve de condução melódica e harmônica para o coro ou para os cantores solistas. Partes rítmicas e instrumentos de percussão criam ambientações sonoras envolventes e é especialmente interessante e dinâmica a escrita para o coro e para as passagens do balé.
A encenação da ópera Matraga produzida pela Fundação Clóvis Salgado foi concebida e é dirigida por Rita Clemente, que apresenta o enredo em um ambiente de luzes claras. Fundos de cores cheias e intensas, algumas rampas, uma árvore seca estilizada e um grande cavalo articulado de madeira marcam o cenário, no todo sóbrio e muito bonito (cenografia de Miriam Menezes e iluminação de Danilo Manzi). Projeções com desenhos em estilo de cordel ilustram cenas, tudo de modo refinado e de bom gosto. O universo do sertão em toda a sua grandeza e crueza, da violência dos jagunços à religiosidade e ao misticismo, tudo é estetizado nas cenas, na dança e na música.
A ópera conta com um narrador (o ator Gilson Barros) que, acompanhado por um violeiro (Chico Lobo), relata sobre o conto de Guimarães Rosa e os seus personagens.
Com essas opções – valorizando uma dimensão mais transversal dos acontecimentos em um cenário estilizado esteticamente –, perdeu-se algo do drama pessoal e do caráter visceral do texto contundente de Guimarães Rosa. Em entrevista à Revista CONCERTO, a diretora Clemente expõe mesmo a ideia de uma visão mais abrangente e contextual, em detrimento de construções dramáticas: “A música é sofisticadamente criada para dar voz à cena. Por isso opto pelo diálogo entre os vocabulários de cena e não pela ‘dramatização’ – essa ideia equivocada sobre teatro. O que rege a interpretação em Matraga é a circunstância, o que rege a encenação é a circunstância, e o que me guia é criar diálogo em tudo, com tudo.”
No geral, foi excelente a junção e interação dos atores, dos cantores, dos bailarinos e do coro, em uma movimentação cênica muito fluente. O Coral Lírico de Minas Gerais (preparado por Hernán Sanchez) e a Cia. de Dança Palácio das Artes são parte determinante na condução da história e atuaram com competência em algumas das passagens mais inspiradas da partitura. Concorreram para o bom resultado do conjunto coreografias adequadas (direção Alex Soares) e bonitos figurinos (Sayonara Lopes).
Foi bem também a Orquestra Sinfônica de Minas Gerais que, sob a condução de maestra Ligia Amadio, diretora musical da produção, exibiu boa sonoridade e elã musical.
A montagem de Matraga é também uma homenagem aos 90 anos do compositor Rufo Herrera, nascido na Argentina, mas radicado no Brasil desde a década de 1960, com uma importante atividade em Minas Gerais. Além de um belo e bem-acabado espetáculo, Matraga tem o mérito de tematizar a cultura mineira e brasileira, ampliando, por meio da arte lírica, a percepção de nossa identidade.
Serviço: A ópera Matraga ainda terá apresentações nos dias 27 e 28 de outubro, às 20h30, e dia 29 de outubro, às 19h.
[Nelson Rubens Kunze viajou a Belo Horizonte e assistiu à ópera Matraga a convite da Fundação Clóvis Salgado.]
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Veja abaixo imagens de algumas cenas da estreia de Matraga (todas as fotos são de Guto Muniz, divulgação FCS)
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