Montagem é fiel ao espírito da ‘Ópera dos três vinténs’

Ópera? Teatro de prosa? Na deliberada mescla destes gêneros reside a riqueza da encenação da Ópera dos três vinténs, de Bertolt Brecht e Kurt Weill, em cartaz no Teatro São Pedro

Poucos títulos parecem tão adequados a esse tipo de mistura do que esta recriação moderna da setecentista Ópera dos mendigos, de John Gay e Johann Christoph Pepusch. Se, na ópera tradicional, o nome do libretista sequer costuma ser mencionado, no espetáculo estreado em Berlim, em 1928, o dramaturgo Brecht aparece com destaque pelo menos equivalente ao do compositor Weill.

No São Pedro, a ópera esteve não apenas no título, mas na utilização de cantores líricos, interpretando suas partes no alemão original, com respeito à partitura, e sem as limitações vocais que atores costumam demonstrar ao abordar esse repertório. Já o teatro de prosa refletiu-se na decisão de não cortar diálogos, incluindo uma boa quantidade de texto falado em português, não apenas pelos dois atores que a direção resolveu colocar em cena, mas pelos cantores – sempre um desafio para estes.

O êxito de uma encenação dos Vinténs depende muito do desempenho do intérprete do escroque Mac. E Rodrigo Esteves não decepcionou todos que nos lembrávamos de suas atuações convincentes em papéis importantes de barítono em óperas italianas, há alguns anos. Antes surpreendeu nesse bem-vindo retorno aos palcos brasileiros, trazendo uma carismática malemolência e malandragem ao protagonista brechtiano.

Não há como não destacar, ainda, a inteligência de outro barítono, Homero Velho, ao compor seu Peachum, articulando com extrema clareza o texto alemão de suas partes, e fazendo dele a base de suas escolhas musicais. Seu equivalente, do lado feminino do elenco, foi a incandescente Jenny da mezzo Luisa Francesconi – a temperatura do espetáculo subiu quando ela entrou em cena, no segundo ato, e sua vocalidade aveludada e homogênea teve efeito mesmerizante.

Manuela Freua colocou bastante temperamento em sua saborosa Lucy, Lina Mendes (Polly) e Juliana Taino (Mrs. Peachum) souberam caracterizar suas personagens, e Johnny França (Tiger Brown) revelou-se vocalmente sólido. Encarregado do item musical mais conhecido da partitura, o tenor Mauro Wrona (Street singer) empregou sua experiência para colorir e frasear de forma diversa as estrofes repetitivas do Moritat.

Os diretores do espetáculo foram fiéis a Weill e Brecht – cada um à sua maneira. A atividade constante e o repertório variado, trabalhando com diferentes regentes, tem feito bem à Orquestra do Teatro São Pedro. Guiado por um Ira Levin sábio e consciente dos meandros da linguagem do compositor, o grupo trouxe o colorido saboroso e único da inspiradíssima partitura de Weill.  

Tanto nas legendas, quanto no texto falado em português, ficou evidente uma escolha de aproximar a criação brechtiana do Brasil de nossa época, incluindo termos coloquiais e elementos que obviamente inexistiam na Berlim da década de 1920. Infiel ao pé da letra, Dal Farra (que hitchcockianamente incluiu-se na própria encenação, subindo ao palco vestido de black block para ajudar na contrarregragem) foi fiel a Brecht no espírito.

Pois se há um termo conhecido no teatro brechtiano é o Verfremdungseffekt – o efeito de distanciamento, ou estranhamento. Em Brecht, o teatro não deve ser mimese, imitação da realidade: o espectador deve estar consciente de que está diante de uma obra de arte, de um artefato estético, de uma ilusão.

E distanciamento/estranhamento não faltou no São Pedro. Mais do que as alusões à realidade brasileira de hoje (que se impõem em um espetáculo estreado quando a República de Weimar estava em frangalhos, e o nazismo começava a ascender), chamam a atenção os diversos e imaginativos recursos empregados para causar esse distanciamento/estranhamento – desde os vestidos femininos trajados por todos os cantores, independentemente do gênero, até a imensa bola negra a esvoaçar sobre a cabeça dos espectadores e ser empurrada por eles, um recurso digno de Rock in Rio (não por acaso, festival que acontece simultaneamente à montagem da ópera). Teatro de prosa ou ópera, este espetáculo funcionou como ambos – ou, talvez, como uma criativa síntese dos dois.

[A produção de 'A ópera dos três vinténs' fica em carta até o dia 11 de setembro; veja aqui ais informações no Roteiro do Site CONCERTO]

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Rodrigo Esteves e Lina Mendes na ‘Ópera dos três vinténs’ (divulgação, Heloísa Bortz)
Rodrigo Esteves e Lina Mendes na ‘Ópera dos três vinténs’ [Divulgação/Heloísa Bortz]

 

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