No Theatro São Pedro, o tempo parou

por João Luiz Sampaio 18/12/2023

O tempo parou duas vezes na tarde de domingo no Theatro São Pedro.

Sifare refletia sobre a necessidade de se afastar de Aspasia, prometida a seu pai. “Se queres que leve meus pés para longe, que as dores que eu experimentar não se reflitam em ti”. Na voz e na orquestra, a frase, a cada repetição, colocava o público em uma suspensão feita de beleza e de dor. Tanta nobreza na aparência, que solidão por trás das palavras.

Mais tarde, Giulietta. “Onde está você, Romeu? Para onde mandar os meus suspiros?” A delicadeza quase inocente ou a intensidade incontornável da paixão? As duas coisas. “Com que ardor espero você e iludo o meu desejo!” Desejo que é doce, ansioso, dilacerante. “O ar que dança à minha volta me lembra da sua respiração.”

É possível reduzir uma hora e pouco de música a dois momentos? No caso, as árias de Mitridate, de Mozart, e I Capuleti e i Montecchi, de Bellini, foram exemplos bem-acabados do que se ouviu no concerto que o sopranista Bruno de Sá apresentou acompanhado por músicos das orquestras profissional e jovem do teatro, sob regência de Gabriel Rhein-Schirato.

No ano passado, Sá havia feito recital no mesmo palco, dedicado à música barroca. Dessa vez, teve como foco, na primeira parte, o repertório do classicismo. E, na segunda, papéis do bel canto. A voz é uma miríade de cores, que ele usa de forma inteligente para construir suas caracterizações. Isso já conhecíamos. Mas o senso de estilo é tão cuidadoso que é como se, com a mudança de repertório, estivéssemos diante de outro cantor.

 

Em Opprimete i Contumaci, da Clemenza di Tito de Gluck (que música fascinante!), seu Sesto evocou a mistura de sentimentos, da paixão ao ressentimento, que toma o personagem. Com Lucinda, de La Buona Figluola, de Piccinni, leitura de manual de uma ária de bravura. Sá tratou com bom humor a Elvira, mulher de Mustafa, em Pria di dividerci da voi, signore, da L’italiana in Algeri, de Rossini. E sua Maria Stuarda, em È sempre la stessa, da ópera de Donizetti, foi uma revelação.

Tudo sempre com o acompanhamento atento ao espaço da voz de Rhein-Schirato e sua habilidade em construir atmosferas sonoras a partir do drama narrado. Isso já conhecíamos. Mas a capacidade de transformar o som da orquestra a cada cena interpretada, em leituras limpas, precisas... na verdade, isso também já conhecíamos.

Bruno de Sá atuou com os alunos da Academia de Ópera do São Pedro, que também tiveram seus momentos próprios no programa, com destaque para o baixo Gianlucca Braghin, em Mozart e Donizetti, e para a Lucia de Alessandra Carvalho e o Edgardo de Vinicius Cestari no sexteto Chi mi frena in tal momento, da Lucia di Lammermoor. Ouvidos atentos a eles.

Em uma entrevista concedida no ano passado a Irineu Franco Perpetuo, publicada na CONCERTO, o sopranista falou sobre carreira e repertório. “Por que não posso fazer repertório de soprano? Essa não é minha voz? 98% dos compositores escreveram tendo uma voz específica em mente. Então você precisa buscar uma voz que se enquadre naquelas características, não o gênero do cantor. O gênero não é mais questão. Não tem cabimento você dizer que alguém não pode cantar um repertório porque é homem.”

Na saída do teatro, a caminho do metrô, peguei um pedaço de conversa de um casal. O mundo da ópera estaria pronto para um homem interpretando papéis femininos no palco? Não há mais muito o que discutir. Se não estiver pronto, problema dele.

Bruno de Sá está.

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Bruno de Sá durante apresentação no domingo, no Theatro São Pedro [Reprodução/YouTube]
Bruno de Sá durante apresentação no domingo, no Theatro São Pedro [Reprodução/YouTube]

 

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Comentários

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Foi uma apresentação linda... O Bruno de Sá brilhou em cada momento solo e de forma humilde e generosa abrilhantou os momentos em conjunto. Ele rompe barreiras e deve cantar o que quiser... se uma parte do mundo não estiver preparada, outra parte cada vez maior estará e a vida segue...

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